quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Bento XVI - o que é o cristianismo

BENTO XVI (2023). O que é o Cristianismo. Quase um testamento espiritual. Cascais: Lucerna. 200 páginas.


Existem muitos livros publicados de Bento XVI, enquanto Papa, além de conjuntos de homilias, discursos, encíclicas, exortações apostólicas, entrevistas; enquanto teólogo, muitos mais. Mas este não é mais um livro. Aliás, nenhuma das obras refletidas e escritas por Joseph Ratzinger / Bento XVI é mais uma a acrescentar a outra, como soma, mas é única, pois, mesmo em textos próximos, apresenta novos estudos, achegas, referências. Este é um livro, por vontade própria de Bento XVI, publicado a título póstumo.
Recolhe diversos textos, estudo, reflexão, entrevista, intervenções, alguns já conhecidos, mas aperfeiçoados, outros inéditos sobre os fundamentos do cristianismo, sobre a identidade católica, sobre a relação da Igreja com outras igrejas e com o judaísmo. 
O subtítulo diz bem do objetivo desta coletânea, é quase um testamento espiritual! Noutras obras, como Introdução ao Cristianismo ou Jesus de Nazaré, em três volumes, escrito já como Papa, pode ver-se as intuições fundamentais do teólogo e do papa, do estudioso e do pastor, ou ainda, por exemplo, a Introdução à Liturgia, ou os livros de entrevistas, como o Sal da Terra.
Neste livro póstumo, fruto de uma reflexão mais amadurecida, tendo em conta ulteriores desenvolvimentos teológicos, morais, históricos, sociais e culturais, permitem que o autor refaça ou enquadre temáticas e problemáticas, desafiando outros a refletir sobre as questões que se colocam ao mundo de hoje e concretamente à Igreja e à fé.
Nas diferentes temáticas, a linguagem do Papa é muito acessível, mesmo naqueles temas que exige maior cuidado e argumentação. Nesses casos, Bento XVI recorre a uma ou outra imagem facilitando a compreensão, como quando aborda a realidade da transubstanciação na Eucaristia.
Há apontamentos que mostram a delicadeza para com o seu sucessor, o Papa Francisco, o que merece registo. "No final das minhas reflexões gostaria de agradecer ao papa Francisco por tudo o que faz para nos mostrar continuamente a luz de Deus, que mesmo hoje não se extinguiu. Obrigado, santo Padre!" Ao abordar a teologia moral e a misericórdia divina: "... Aqui devemos encontrar a unidade interior da mensagem de João Paulo II e as intenções fundamentais do papa Francisco: contrariamente ao que por vezes se diz, Jão Paulo II não foi rigorista moral. Demonstrando a importância da misericórdia divina, ele dá-nos a oportunidade de aceitas as exigências morais que se colocam ao homem, ainda que não possamos nunca satisfazê-las cabalmente. Os nossos esforços morais são empreendidos sob a luz da misericórdia de Deus, que se revela uma força que cura a nossa fraqueza".
Ao responder a uma questão sobre o Ano de são José, proclamado pelo Papa Francisco: "Naturalmente, fico particularmente feliz por o Papa Francisco ter reavivado nos fiéis a consciência da importância de são José; e depois li com enorme gratidão e profunda adesão a carta apostólica Patris Corde que o Santo Padre escreveu para o 150.º aniversário da proclamação de são José como patrono universal da Igreja universal. É um texto muito simples que vem do coração e vai ao coração, e que exatamente por isso é muito profundo. Penso que este texto deve ser lido e meditado assiduamente pelos fiéis, contribuindo assim para a purificação e para o aprofundamento da nossa veneração dos santos em geral e de são José em particular".
Verifica-se que Bento XVI não foge a questões, em forma de resposta a perguntas que lhe são colocadas ou no desenvolvimento dos temas, mostrando a discordância com este ou aqueloutro autor, num convite à persistência da reflexão dos temas mais problemáticos. Sobre a Comissão da Teológica Fundamental, cujo Presidente era o mesmo que o da Congregação para a Doutrina da Fé e também da Pontifícia Comissão Bíblica, tendo assumido ele, cardeal Ratzinger, esse mandato e serviço durante muitos anos, quase na totalidade do pontificado de João Paulo II, reflete questões como a Teologia da Libertação, com momentos de grande debate. É curioso o apontamento pessoal que faz sobre um teólogo: "O meu amigo padre Juan Alfaro SJ, que na Gregorina ensinava sobretudo a Doutrina da Graça, por razões que me são totalmente incompreensíveis, com o passar do tempo tornara-se num apaixonado defensor da teologia da libertação. Não queria perder a amizade com ele e assim essa foi a única vez, em todo o período da minha pertença à comissão, que faltei à Assembleia Geral".  Também nisto se vê a sua humanidade: a amizade prevaleceu à disputa e discordância teológica.