sábado, 31 de agosto de 2013

XXII Domingo do Tempo Comum - ano C - 1 de setembro

       1 – “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”. Excelente conselho de Jesus, não apenas para a vida religiosa, em sentido estrito, mas para o dia-a-dia, no relacionamento com os outros, na interação social, na relação afetiva e profissional.
       São nossos conhecidos alguns ditados populares semelhantes: “gaba-te cesto que amanhã vais para a vindima”, presunção e água benta cada um toma a que quer, já que ninguém te gaba, gabas-te tu, ninguém é bom juiz em causa própria. A sabedoria popular, como a intervenção de Jesus, diz-nos algo evidente: o bem que fazemos não precisa de ser badalado, por si só produz fruto. Quando uma pessoa tem valor, não precisa de apregoar as suas qualidades aos quatro ventos, a não ser em questões de defesa de honra.
      Não se trata aqui de desvalorizar a autoestima, essencial à saúde psíquica. A pessoa deve estimar-se, sentir-se digna de ser amada pelo que é. Não esqueçamos, num contexto mais cristão, somos amados, somos filhos de Deus e para Deus valemos tudo, cuja valoração devemos exigir aos outros. Não somos dispensáveis, não somos lixo para deixar fora ou calcar aos pés. É benéfica uma dose suficiente de otimismo e autoconfiança.
       A humildade não conflitua com a autoestima. Pelo contrário, quem se valoriza como pessoa, facilmente aceita as suas limitações e insuficiências, não como defeitos de fabrico, mas como contingência inevitável da respetiva humanidade. No plano da fé, a humildade faz-nos reconhecer que não somos deuses, impecáveis, não somos melhores que os outros, somos o que somos, precisamos de amar e de nos sentir amados, de reconhecer os outros como pessoas e de sermos reconhecidos pelo que somos (e pelo que fazemos de bem).
       A prepotência vai noutro sentido: acharmos que somos tão bons que não temos defeitos, somos melhores que os outros, não precisamos de ninguém, e quando precisarmos não é por necessidade nossa mas por obrigação alheia.
       Por outro lado, humildade não é, em meu entender, fazer-se coitadinho, para que os outros tenham pena de mim e me deem mais atenção. Nesse caso seria uma outra forma de imposição, de falsa modéstia, que também não é saudável. Daí que por vezes seja estranho ouvir: ai, eu não tenho qualidades, não sei fazer nada de bom, tudo me corre mal, não presto, não sirvo para nada... quase à espera, em jogo emocional, que o outro diga o contrário, ou que insista ou me peça de joelhos e me convença que eu sou a melhor pessoa do mundo... Por mais desfocada que esteja a nossa vida, continuámos a ser fruto do amor de Deus, por mais desfigurada que seja a nossa história continuamos a ser ROSTO de Jesus Cristo.
        2 – “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”, ou como escutámos no domingo passado, “há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos”. Não nos iludamos. Querermos parecer mais que os outros pode não nos trazer felicidade. Pelo contrário, fazermos depender a nossa vida daquilo que os outros dizem pode ser muito confrangedor. Os outros sempre nos hão de desiludir, ou por que não nos dão a atenção devida, ou por que não valorizaram o suficiente o nosso esforço, o nosso talento. Não é culpa dos outros. As nossas elevadas expectativas podem não encontrar o acolhimento devido. Diversamente por que não fizemos mais do que aquilo que outros esperavam de nós, ou simplesmente os outros não sabem como mostrar-se agradecidos da forma como merecemos. É saudável trabalhar pela certeza do bem que fazemos e não tanto pelo que os outros vão opinar. Mesmo sabendo que a todos faz bem o reconhecimento alheio!
       A imagem utilizada por Jesus é muito simples e facilmente experiencial, apesar de hoje, quando há banquetes, bodas, jantares, os lugares já estarem definidos, evitando, assim, que aconteça que alguém tenha de ceder o seu lugar a outro.
       Uma vez mais, Jesus nos desafia a sermos pró-ativos, agindo, lutando, caminhando, sem nos julgarmos mais que os outros e valorizando a nossa atenção sobre os mais necessitados. O que é mais importante, a imagem que os outros fazem de mim ou o que faço para tornar mais fácil e agradável a vida dos que me rodeiam?
       A lógica de Jesus Cristo: para Deus os últimos são os primeiros. É-nos mais fácil valorizar aqueles com quem nos identificamos mais, as pessoas com mais elevado estatuto social. Para Jesus e, consequentemente, para os cristãos, o maior cuidado deverá ser dado aos que valem menos aos olhos deste mundo, precisamente para incluir, para valorizar, para “igualar”. Trata-se de uma descriminação positiva. Não excluímos os primeiros, promovemos os segundos. Desta forma sabemos que agimos ao jeito de Cristo: “Quando ofereceres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos; e serás feliz por eles não terem com que retribuir-te: ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos”.
       3 – “Quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado”.
       Tenho para mim que a grandeza de uma pessoa também se avaliza pela postura humilde no momento da vitória. Quando estamos por cima, expressão muito popular, é que mostramos verdadeiramente o que somos. Custa-me muito ver quando alguém ganha uma disputa política, desportiva, cultural, e que na proclamação da vitória tenha necessidade de espezinhar, de acentuar “os podres” dos derrotados, a urgência em denegrir mais os adversários para se engrandecer perante os seus ouvintes. A vitória já diz o suficiente e não garante que as ideias do vencedor sejam as mais nobres. Neste caso, as palavras são desnecessárias a não ser para agradecer, para chamar todos à participação, pondo de lado as disputas, procurando valorizar o que possa ser benéfico para todos. Podem, inclusive, ser assumidas propostas dos adversários.
       Para quem perde, não será diferente. Ou a mensagem não passou. Ou não era ainda o tempo oportuno. Ou os outros têm opiniões divergentes. Mas logo é tempo de trabalhar, na reflexão e nas atitudes, para o maior bem de todos. Não é fácil. Mas não adianta passar o tempo a protestar contra os outros. Será o tempo de ajuntar esforços.
       Eis o conselho sábio de Ben-Sirá: “Filho, em todas as tuas obras procede com humildade e serás mais estimado do que o homem generoso. Quanto mais importante fores, mais deves humilhar-te e encontrarás graça diante do Senhor. Porque é grande o poder do Senhor e os humildes cantam a sua glória. A desgraça do soberbo não tem cura, porque a árvore da maldade criou nele raízes. O coração do sábio compreende as máximas do sábio e o ouvido atento alegra-se com a sabedoria”.
       Um conselho, lido algures: lembra-te de respeitar aqueles que encontrares quando fores a subir, pois serão os mesmos que encontrarás quando vieres a descer.

       4 – Aos discípulos de ontem e de hoje, daquele e deste tempo, Jesus desafia ao serviço: quem entre vós quiser ser o maior seja o servo de todos; se Eu sou Mestre e Senhor e vos lavei os pés… como Eu vos fiz fazei vós também uns aos outros; nisto conhecerão que sóis meus discípulos, se vos amardes uns aos outros como Eu vos amei; o que fizerdes ao mais pequeno dos meus irmãos é a Mim que o fazeis… Eu vim não para ser servido mas para servir e dar a vida por todos… o discípulo não é mais que o Mestre!

Textos para a Eucaristia (ano C): Sir 3,19-21.30-31; Heb 12,18-19.22-24a; Lc 14,1.7-14.

sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Lumen Fidei - Fé e Eucaristia

       A natureza sacramental da fé encontra a sua máxima expressão na Eucaristia. Esta é alimento precioso da fé, encontro com Cristo presente de maneira real no seu acto supremo de amor: o dom de Si mesmo que gera vida. Na Eucaristia, temos o cruzamento dos dois eixos sobre os quais a fé percorre o seu caminho. Por um lado, o eixo da história: a Eucaristia é acto de memória, actualização do mistério, em que o passado, como um evento de morte e ressurreição, mostra a sua capacidade de se abrir ao futuro, de antecipar a plenitude final; no-lo recorda a liturgia com o seu hodie, o «hoje» dos mistérios da salvação. Por outro lado, encontra-se aqui também o eixo que conduz do mundo visível ao invisível: na Eucaristia, aprendemos a ver a profundidade do real. O pão e o vinho transformam-se no Corpo e Sangue de Cristo, que Se faz presente no seu caminho pascal para o Pai: este movimento introduz- nos, corpo e alma, no movimento de toda a criação para a sua plenitude em Deus.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 44)

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

Papa FRANCISCO - Não há paz sem diálogo


Discurso do Papa Francisco a um grupo de estudantes e professores japoneses

       Bom dia! Vê-se que entendem o italiano...
       Saúdo-vos! Para mim esta visita é um prazer. Espero que esta viagem vos seja muito fecunda, pois conhecer outras pessoas e outras culturas nos faz sempre bem, nos faz crescer.
       E por quê? Porque se nos isolarmos em nós mesmos, só teremos o que temos, não poderemos crescer culturalmente; mas se formos ao encontro de outras pessoas, culturas, modos de pensar e religiões, sairemos de nós e começaremos a aventura tão bonita chamada «diálogo».
       O diálogo é muito importante para a nossa maturidade, pois no confronto com o outro, com as demais culturas, inclusive no confronto sadio com as outras religiões nós crescemos: crescemos e amadurecemos.
       Sem dúvida, há um perigo: se no diálogo nos fecharmos e nos irarmos, poderemos contestar; é o perigo da altercação, e isto não está bem, porque dialogamos para nos encontrarmos, não para impugnar.
       E qual é a atitude mais profunda que devemos ter para dialogar e não altercar? A mansidão, a capacidade de encontrar as pessoas, de encontrar as culturas com a paz; a capacidade de fazer perguntas inteligentes: «Mas por que pensas assim? Por que esta cultura é assim?». Ouvir o próximo e depois falar. Primeiro ouvir, depois falar. Tudo isto é mansidão. Se tu não pensas como eu — sabes... penso de outro modo, não me convences — mas somos amigos à mesma; ouvi como tu pensas e tu ouviste como eu penso.
       E sabeis algo, algo importante? É este diálogo que faz a paz. Não se pode ter paz sem diálogo. Todas as guerras e lutas, todos os problemas insolúveis, com os quais nos confrontamos existem devido à falta de diálogo. Quando existe um problema, dialogo: isto leva à paz. É isto que desejo a vós nesta viagem de diálogo: que saibais dialogar; como pensa esta cultura, como isto é bonito, não gosto disto, mas dialogando. Assim crescemos. Desejo-vos isto, e uma boa viagem em Roma. Desejo o melhor para vós, para a vossa escola, para as vossas famílias. Deus abençoe todos vós. Obrigado!

Pátio de São Dâmaso, Quarta-feira, 21 de Agosto de 2013
FONTE: aqui.

Lumen Fidei - fé dos pais gera os filhos para a vida

       Uma criança não é capaz de um ato livre que acolha a fé: ainda não a pode confessar sozinha e, por isso mesmo, é confessada pelos seus pais e pelos padrinhos em nome dela. A fé é vivida no âmbito da comunidade da Igreja, insere- se num «nós» comum. Assim, a criança pode ser sustentada por outros, pelos seus pais e padrinhos, e pode ser acolhida na fé deles que é a fé da Igreja, simbolizada pela luz que o pai toma do círio na liturgia baptismal. Esta estrutura do Batismo põe em evidência a importância da sinergia entre a Igreja e a família na transmissão da fé. Os pais são chamados - como diz Santo Agostinho - não só a gerar os filhos para a vida, mas a levá-los a Deus, para que sejam, através do Baptismo, regenerados como filhos de Deus, recebam o dom da fé. Assim, juntamente com a vida, é-lhes dada a orientação fundamental da existência e a segurança de um bom futuro; orientação esta, que será ulteriormente corroborada no sacramento da Confirmação com o selo indelével do Espírito Santo.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 43)

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Lumen Fidei - a fé e a busca de Deus

       A luz da fé em Jesus ilumina também o caminho de todos aqueles que procuram a Deus e oferece a contribuição própria do cristianismo para o diálogo com os seguidores das diferentes religiões...
       Deste modo, a estrela fala da paciência de Deus com os nossos olhos, que devem habituar-se ao seu fulgor. Encontrando-se a caminho, o homem religioso deve estar pronto a deixar-se guiar, a sair de si mesmo para encontrar o Deus que não cessa de nos surpreender. Este respeito de Deus pelos olhos do homem mostra-nos que, quando o homem se aproxima d’Ele, a luz humana não se dissolve na imensidão luminosa de Deus, como se fosse um estrela absorvida pela aurora, mas torna-se tanto mais brilhante quanto mais perto fica do fogo gerador, como um espelho que reflecte o resplendor. A confissão de Jesus, único Salvador, afirma que toda a luz de Deus se concentrou n’Ele, na sua «vida luminosa», em que se revela a origem e a consumação da história. Não há nenhuma experiência humana, nenhum itinerário do homem para Deus que não possa ser acolhido, iluminado e purificado por esta luz. Quanto mais o cristão penetrar no círculo aberto pela luz de Cristo, tanto mais será capaz de compreender e acompanhar o caminho de cada homem para Deus...
       Quem se põe a caminho para praticar o bem, já se aproxima de Deus, já está sustentado pela sua ajuda, porque é próprio da dinâmica da luz divina iluminar os nossos olhos, quando caminhamos para a plenitude do amor.

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 35)

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Lumen Fidei - fé, razão, amor, verdade

       A luz do amor, própria da fé, pode iluminar as perguntas do nosso tempo acerca da verdade. Muitas vezes, hoje, a verdade é reduzida a autenticidade subjectiva do indivíduo, válida apenas para a vida individual. Uma verdade comum mete-nos medo, porque a identificamos - como dissemos atrás - com a imposição intransigente dos totalitarismos; mas, se ela é a verdade do amor, se é a verdade que se mostra no encontro pessoal com o Outro e com os outros, então fica livre da reclusão no indivíduo e pode fazer parte do bem comum. Sendo a verdade de um amor, não é verdade que se impõe pela violência, não é verdade que esmaga o indivíduo; nascendo do amor pode chegar ao coração, ao centro pessoal de cada homem; daqui resulta claramente que a fé não é intransigente, mas cresce na convivência que respeita o outro. O crente não é arrogante; pelo contrário, a verdade torna-o humilde, sabendo que, mais do que possuirmo-la nós, é ela que nos abraça e possui. Longe de nos endurecer, a segurança da fé põe-nos a caminho e torna possível o testemunho e o diálogo com todos.
       Por outro lado, enquanto unida à verdade do amor, a luz da fé não é alheia ao mundo material, porque o amor vive-se sempre com corpo e alma; a luz da fé é luz encarnada, que dimana da vida luminosa de Jesus. A fé ilumina também a matéria, confia na sua ordem, sabe que nela se abre um caminho cada vez mais amplo de harmonia e compreensão. Deste modo, o olhar da ciência tira benefício da fé: esta convida o cientista a permanecer aberto à realidade, em toda a sua riqueza inesgotável. A fé desperta o sentido crítico, enquanto impede a pesquisa de se deter, satisfeita, nas suas fórmulas e ajuda-a a compreender que a natureza sempre as ultrapassa. Convidando a maravilhar-se diante do mistério da criação, a fé alarga os horizontes da razão para iluminar melhor o mundo que se abre aos estudos da ciência.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 34)

domingo, 25 de agosto de 2013

Haruki Murakami - o tempo como sonho ambíguo

       - Todos nós perdemos coisas a que damos valor. Oportunidades perdidas, possibilidades goradas, sentimentos que nunca mais voltaremos a viver. Faz parte da vida. Mas dentro da nossa cabeça, pelo menos é aí que eu imagino que tudo aconteça, existe um quartinho onde armezanamos todas as recordações. E a fim de compreendermos os mecanismos do nosso próprio coração temos que ir sempre dando entrada a novas fichas, como aqui [na Biblioteca] fazemos. Volta e meia precisamos de limpar o pó às coisas, deixar entrar ar, mudar a águia das plantas. Por outras palavras, cada um vive para sempre fechado dentro da sua própria biblioteca...
       Todas as pessoas precisam de um lugar onde possam pertencer...

       Sentes o peso do tempo como um velho sonho ambíguo. Continuas sempre em movimento, tentando arranjar maneira de te esquivares. Porém, mesmo que vás aos confins do mundo não lograrás escapar-lhe. Mesmo assim, não tens outro remédio senão seguir em frente, até esse fim do mundo. Há algo que não se consegue fazer sem lá chegar.

in HARUKI MURAKAMI. Kafka à Beira-mar. Casa das Letras. Alfragide 2012.

Lumen Fidei - escuta da fé, ver e amar

        A conexão entre o ver e o ouvir, como órgãos do conhecimento da fé, aparece com a máxima clareza no Evangelho de João, onde acreditar é simultaneamente ouvir e ver. A escuta da fé verifica-se segundo a forma de conhecimento própria do amor: é uma escuta pessoal, que distingue e reconhece a voz do Bom Pastor (cf. Jo 10, 3-5); uma escuta que requer o seguimento, como acontece com os primeiros discípulos que, «ouvindo [João Baptista] falar desta maneira, seguiram Jesus» (Jo 1, 37). Por outro lado, a fé está ligada também com a visão: umas vezes, a visão dos sinais de Jesus precede a fé, como sucede com os judeus que, depois da ressurreição de Lázaro, «ao verem o que Jesus fez, creram n’Ele» (Jo 11, 45); outras vezes, é a fé que leva a uma visão mais profunda: «Se acreditares, verás a glória de Deus» (Jo 11, 40). Por fim, acreditar e ver cruzam-se: «Quem crê em Mim (...) crê n’Aquele que Me enviou; e quem Me vê a Mim, vê Aquele que me enviou» (Jo 12, 44-45). O ver, graças à sua união com o ouvir, torna-se seguimento de Cristo; e a fé aparece como um caminho do olhar em que os olhos se habituam a ver em profundidade. E assim, na manhã de Páscoa, de João - que, ainda na escuridão perante o túmulo vazio, «viu e começou a crer» (Jo 20, 8) - passa-se a Maria Madalena - que já vê Jesus (cf. Jo 20, 14) e quer retê-Lo, mas é convidada a contemplá-Lo no seu caminho para o Pai - até à plena confissão da própria Madalena diante dos discípulos: «Vi o Senhor!» (Jo 20, 18).
       Como se chega a esta síntese entre o ouvir e o ver? A partir da pessoa concreta de Jesus, que Se vê e escuta. Ele é a Palavra que Se fez carne e cuja glória contemplámos (cf. Jo 1, 14). A luz da fé é a luz de um Rosto, no qual se vê o Pai. De facto, no quarto Evangelho, a verdade que a fé apreende é a manifestação do Pai no Filho, na sua carne e nas suas obras terrenas; verdade essa, que se pode definir como a «vida luminosa» de Jesus. Isto significa que o conhecimento da fé não nos convida a olhar uma verdade puramente interior; a verdade que a fé nos descerra é uma verdade centrada no encontro com Cristo, na contemplação da sua vida, na percepção da sua presença. Neste sentido e a propósito da visão corpórea do Ressuscitado, São Tomás de Aquino fala de oculata fides (uma fé que vê) dos Apóstolos: viram Jesus ressuscitado com os seus olhos e acreditaram, isto é, puderam penetrar na profundidade daquilo que viam para confessar o Filho de Deus, sentado à direita do Pai.
       Só assim, através da encarnação, através da partilha da nossa humanidade, podia chegar à plenitude o conhecimento próprio do amor. De facto, a luz do amor nasce quando somos tocados no coração, recebendo assim, em nós, a presença interior do amado, que nos permite reconhecer o seu mistério. Compreendemos agora por que motivo, para João, a fé seja, juntamente com o escutar e o ver, um tocar, como nos diz na sua Primeira Carta: «O que ouvimos, o que vimos (…) e as nossas mãos tocaram relativamente ao Verbo da Vida…» (1 Jo 1, 1). Por meio da sua encarnação, com a sua vinda entre nós, Jesus tocou-nos e, através dos sacramentos, ainda hoje nos toca; desta forma, transformando o nosso coração, permitiu-nos - e permite-nos - reconhecê-Lo e confessá-Lo como Filho de Deus. Pela fé, podemos tocá-Lo e receber a força da sua graça. Santo Agostinho, comentando a passagem da hemorroíssa que toca Jesus para ser curada (cf. Lc 8, 45-46), afirma: «Tocar com o coração, isto é crer». A multidão comprime-se ao redor de Jesus, mas não O alcança com aquele toque pessoal da fé que reconhece o seu mistério, o seu ser Filho que manifesta o Pai. Só quando somos configurados com Jesus é que recebemos o olhar adequado para O ver.

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 30-31)

Lumen Fidei - fé como escuta e visão

       O conhecimento associado à palavra é sempre conhecimento pessoal, que reconhece a voz, se lhe abre livremente e a segue obedientemente. Por isso, São Paulo falou da «obediência da fé» (cf. Rm 1, 5; 16, 26).23 Além disso, a fé é conhecimento ligado ao transcorrer do tempo que a palavra necessita para ser explicitada: é conhecimento que só se aprende num percurso de seguimento. A escuta ajuda a identificar bem o nexo entre conhecimento e amor...
       Se a luz, por um lado, oferece a contemplação da totalidade a que o homem sempre aspirou, por outro, parece não deixar espaço à liberdade, pois desce do céu e chega directamente à vista, sem lhe pedir que responda. Além disso, parece convidar a uma contemplação estática, separada do tempo concreto em que o homem goza e sofre. Segundo esta concepção, haveria oposição entre a abordagem bíblica do conhecimento e a grega, a qual, na sua busca duma compreensão completa da realidade, teria associado o conhecimento com a visão...
       O ouvido atesta não só a chamada pessoal e a obediência, mas também que a verdade se revela no tempo; a vista, por sua vez, oferece a visão plena de todo o percurso, permitindo situar-nos no grande projecto de Deus; sem tal visão, disporíamos apenas de fragmentos isolados de um todo desconhecido.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 29)

sábado, 24 de agosto de 2013

XXI Domingo do tempo Comum - ano C - 25 de agosto

       1 – Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.
       Olhando para os meios de comunicação social, mas também à nossa volta, cedo verificámos que os primeiros são os bem-sucedidos, a viver em mansões de luxo, dinheiro aos molhos, carros de alta cilindrada, que participam em festas onde se gastam balúrdios, sublinhando a beleza corporal, com enorme visibilidade social, e influência política e cultural, futebolistas e atletas de alta competição, estrelas de cinema e televisão, cantores.
       O primeiro sublinhado: as pessoas têm o direito a usufruir do fruto do seu trabalho, se é justo e honesto, e a serem reconhecidas pelo seu talento. Por outro lado, e é mesmo outro lado, para alguém enriquecer precisa de outros. A riqueza produzida precisa da matéria-prima (a criação é de todos e para todos, alguns já nascem sem direito aos bens da criação), das pessoas que trabalham (o dinheiro e os bens não caem do céu, há quem produza e nem sempre seja remunerado justamente), que gerem, que engendram, com criatividade e inteligência, novos produtos e formas de aumentar e rentabilizar capitais e riqueza. Do mesmo modo, para sermos reconhecidos precisamos de outros iguais (não inferiores).
       Deseja-se, em prol da harmonia e da paz social, que os mais ricos partilhem com os mais necessitados, não fechem os olhos à miséria. Nas democracias, o pagamento de impostos, ajustados aos recursos disponíveis. Em todos os regimes, a exclusão da corrupção, como fator de equilíbrio e justiça social. A riqueza e os bens materiais não impedem as pessoas de serem cristãs. Há empresas que promovem os ideais do Evangelho, usufruindo, envolvendo os trabalhadores na gestão, gerando emprego e capital, investindo na formação, na criação de novos empregos, na sustentabilidade das empresas, remunerando de forma justa e atendendo às necessidades das famílias.
       No evangelho, víamos há pouco, alguém pede a Jesus a intervenção na disputa de uma herança. Jesus aparentemente não “toma partido”, mas aponta uma causa a vencer: a avareza. Para quem tenha muito e para quem tenha pouco. O avarento não olha para as pessoas como pessoas, mas como números e como meio para obter o maior lucro. Assim se caracteriza o capitalismo selvagem que não garante a sobrevivência da humanidade, ao invés, gera miséria, revolta, conflito, depressões, destruição e morte.
       2 – Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.
       Jesus vai mais além. Todos somos filhos de Deus e como irmãos devemos cuidar uns dos outros e sobretudo dos mais frágeis. Esta é uma forma privilegiada de encontrar Deus. Além disso, as sociedades tendem a gerar ódios e violências quando há uns que têm tudo e outros que não têm nada. Em questões de sobrevivência, quem nada tem, nada tem a perder no meio do caos que se possa instalar. Vejam-se as manifestações em Madrid, Marselha, São Paulo ou Rio de Janeiro, cujas razões iniciais (falta de emprego, salários miseráveis, preço elevadíssimo dos bens essenciais) dão azo a outras motivações (anarquia, racismo, ladroagem).
       Os “privilegiados” pelo trabalho, pela herança patrimonial e/ou pela sorte devem sentir-se envolvidos na sociedade, corresponsáveis, irmãos, sabendo que há mais alegria em dar do que em receber. E “um obrigado” muitas vezes vale mais do que alguns milhares de euros. Na lógica do evangelho e da vida, o dom só tem sentido se partilhado. O pecado das origens tem muito a ver com isto, como recordava D. António Couto, aos jovens Crismandos da paróquia de Tabuaço, o pecado não está no colher o fruto da árvore, mas no arrebanhar esse fruto sem o partilhar, fechando as mãos. Só eu poderei colher os frutos daquela árvore. Eu. Eva e Adão. Mais ninguém. Mas a árvore era para todos, também para os filhos e para as gerações futuras, também para outros casais. O que recebi (gratuitamente) não tenho o direito de reter apenas para mim ou para os meus.
       Curiosa aquela passagem da Sagrada Escritura a que se juntam as palavras de Caim: acaso sou guarda do meu irmão? Novamente o egoísmo. Se alguém me faz frente ou sombra, excluo ou mato?! A palavra de Deus não deixa margem à dúvida: sou guarda do meu irmão, sou responsável por ele. Não matarás. Amarás o próximo como a ti mesmo.
       A este propósito, o povo Eleito tinha uma lei que repunha mais igualdade e justiça. A cada 7 anos, a terra, a vinha e olival descansavam e os pobres podiam alimentar-se (Ex 23, 10-11), e os escravos ser libertos (Ex 21, 1-11). Por outro lado, a contagem 7 X 7 anos, 49 anos, findos os quais se realizava o Jubileu, dia do grande Perdão: “Cada um de vós voltará à sua propriedade, e à sua família... Nenhuma terra será vendida definitivamente porque a terra pertence-me, e vós sois apenas estrangeiros e meus hóspedes. Portanto, concedereis o direito de resgate a todas as terras que forem da vossa propriedade. Se o teu irmão cair na pobreza e vender uma parte da sua propriedade, a que tem direito de resgate, o seu parente mais próximo deve ir resgatar o que o seu irmão vendeu” (Lv 25, 8-34).
       3 – Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.
        Reconhecemos os últimos do nosso tempo com demasiada facilidade: pobres, desempregados, deficientes, maltrapilhos, cada vez mais, os sem-abrigo, mulheres maltratadas, crianças sem família, pedintes, e aqueles que passam fome e de forma envergonhada não solicitam ajuda, famílias endividadas (algumas por culpa própria, muitas pelo sistema económico-financeiro colapsado), devido a expectativas exacerbadas, ou consequência de falências danosas (muitas por negligência ou por dolo) que geraram milhares de novos desempregados, não apenas de um membro da família, mas o casal, os emigrantes (uns poucos por vontade própria, por opção, muitos porque não terem outro remédio), à procura de novas pátrias, muitos morrendo na travessia, como sublinhou a visita do Papa a Lampedusa, os idosos, uma franja significativa da sociedade que por vezes é esquecida como o casaco de inverno no bengaleiro durante a maior parte do ano, a quem é negado o direito à participação ativa…
       Se a bolsa de valores tiver uma ligeira queda, alerta o Papa, logo se gera um drama, que ocupa grande parte dos noticiários, colocando de sobreaviso os bancos, governos, agências que enlixam países e sistemas financeiros. Morrem milhares de pessoas por dia à fome, vítimas de violência doméstica, da toxicodependência, de guerras, de milícias populares, de rixas entre bandos, e serão notícia se o sistema financeiro não fornecer dados novos, sem direito a atenção dos “fazedores de opinião”. É algo que já faz parte da paisagem. Indiferença. Notícias para preencher espaço.
       4 – Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.
       Alguém se acerca de Jesus e lhe pergunta: «Senhor, são poucos os que se salvam?». Faz-nos refletir a resposta de Jesus «Esforçai-vos por entrar pela porta estreita, porque Eu vos digo que muitos tentarão entrar sem o conseguir». Uma reprimenda? Talvez. Ou um desafio: não vos preocupeis com a quantidade dos que se salvam. É dom de Deus. Preocupais-vos em entrar pela porta estreita.
       Voltando um pouco atrás. Somos responsáveis pelos outros, mas não podemos obrigar os outros a agir desta ou daquela maneira. “Quem Me fez juiz das vossas partilhas?” Nem sequer podemos usar a Escritura Sagrada para fazer prevalecer uma obrigação aos outros. A salvação é uma proposta luminosa que pode guiar-nos pelo reino de Deus. Cabe-nos acolher ou recusar.
       Obviamente, a partilha solidária, a atenção aos outros, o cuidado dos mais desfavorecidos, não é uma opção para o discípulo de Jesus, é uma exigência interior. A fé provoca as obras. A fé exige compromissos concretos com o bem dos outros. O "salve-se quem puder" para os cristãos terá de ser salvação acolhida, vivida e celebrada em comunidade. Não posso obrigar os outros. Mas devo obrigar-me a mim, como seguidor de Jesus, esforçando-me por entrar pela porta estreita.
       O compromisso é de cada um de nós. Não há volta a dar. Amar a Deus implica amar aqueles que Deus ama. Não se pode amar o Pai odiando os filhos. Amamos a Deus cuidando dos irmãos. Ou somos mentirosos. A fé sem obras é perfeitamente dispensável, é como árvore sem frutos, diria Bento XVI. As obras testam, explicitam e tornam a fé significativa e relevante.
 
       5 – Há últimos que serão dos primeiros e primeiros que serão dos últimos.
       Com efeito, a Palavra de Deus traz-nos Luz para a nossa peregrinação terrena e história. A garantia da salvação que nos chega de Deus envolve-nos e compromete-nos na oração, na paz e na justiça. O profeta Isaías, na primeira leitura, fala-nos dos desígnios do Senhor que quer congregar todos os povos, na contemplação da Sua glória, para qual todos somos atraídos.
       De modo semelhante poderemos entender as palavras da Epístola aos Hebreus: no convite a exercitarmos a paz e a justiça, promovendo a correção fraterna, como os pais em relação aos filhos, para vivermos harmoniosa e fraternalmente em comunidade.

Textos para a Eucaristia (ano C): Is 66, 18-21; Heb 12, 5-7.11-13; Lc 13, 22-30.

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

Quando o amanhã começar sem mim

       Belíssimo poema que Eben recebe de sua irmã biológica, sobre a sua outra irmão biológica já falecida e que encontrou do outro lado (em UMA PROVA DO CÉU):
"Quando o amanhã começar sem mim" ( David M. Romano, / 1993)

Quando o amanhã começar sem mim,
E eu não estiver lá para ver,
Se o sol nascer e encontrar seus olhos
Cheios de lágrimas por mim,

Eu gostaria que você não chorasse
Da maneira que chorou hoje,
Enquanto pensava nas muitas coisas
Que deixamos de dizer.

Sei quanto você me ama,
E quanto amo você,
E cada vez que você pensa em mim,
Sei que sente a minha falta.

Mas quando o amanhã começar sem mim,
Por favor, tente entender
Que um anjo veio e chamou meu nome,
Tomou-me pela mão
E disse que meu lugar estava pronto
Nas moradas celestiais
E que eu tinha de deixar para trás
Todos os que eu tanto amava.

Mas quando me virei para ir embora
Uma lágrima escorreu-me pela face
Por toda a vida eu pensei
Que não queria morrer.
Eu tinha tanto para viver,
Tanta coisa por fazer,
E pareceu quase impossível
Que eu estivesse indo sem você.

Pensei em nossos dias passados,
Nos dias bons e nos dias ruins,
Em todo o amor que vivemos,
Em toda a alegria que tivemos.

Se eu pudesse reviver o ontem
Ainda que só por um instante,
Eu diria adeus e lhe daria um beijo
E talvez visse você sorrir.

Só então descobri
Que isso não aconteceria,
Pois o vazio e as lembranças
Ocupariam meu lugar.

Quando pensei nas coisas deste mundo
Vi que posso não voltar amanhã,
Então pensei em você
E meu coração se encheu de dor.

Mas quando cruzei os portões do céu
Eu me senti em casa
Quando Deus olhou para mim e sorriu
De seu grande trono dourado,

Ele disse:

"Isto é a eternidade
E tudo o que lhe prometi.
Agora sua vida na Terra é passado
Mas aqui uma vida nova começa.
Eu prometo que não haverá amanhã,
Mas que o hoje durará para sempre.
E como todos os dias serão iguais,
Não haverá saudades do passado.
Você foi tão fiel
Tão confiável e verdadeiro,
Embora tivesse feito coisas
Que sabia que não deveria.
Mas você foi perdoado
E agora finalmente está livre.
Então que tal me dar a mão
E compartilhar da minha vida?"
Logo, quando o amanhã começar sem mim,
Não pense que estamos separados,
Pois todas as vezes que pensar em mim,
Eu estarei dentro do coração.

in EBEN ALEXANDER. Uma prova do Céu.

Dr. Eben Alexander - Uma prova do Céu

EBEN ALEXANDER. Uma prova do Céu. Testemunho de neurocirurgião sobre a vida além da morte. Lua de Papel. Alfragide 2013, 200 páginas.
       Um neurocirurgião que passa por uma experiência de quase morte. 10 de novembro de 2010. Uma dor aguda, do outro mundo, convulsões, revirar de olhos, desmaio, fá-lo parar nas Urgências de um hospital onde já trabalhou. 7 dias em coma. Quatro dias é o tempo além do qual não há regresso possível ou a haver a pessoa ficará num estado vegetativo ou com muitas mazelas mentais e físicas. Ao sétimo dia a esperança, do lado de cá, está no fim. É tempo de reunir e desligar as máquinas. A família toma consciência disso. Os médicos prolongaram esta decisão para lá do tempo.
       Entretanto, do outro lado, o Dr. Alexander vive uma experiência extraordinária. Sem saber é conduzido pela irmã biológica, que já tinha morrido. Como tinha sido adotado, não reconhece a irmã, mas apenas uma figura luminosa, cheia de bondade. Descobrirá, quando outra irmã biológica lhe enviar uma foto. Ascende ao Céu, guiado por um som, música celestial, onde tudo é paz, harmonia. É um mundo ultrareal. Contacta com Deus, não Lhe vê o rosto mas sabe que é Deus. Está finalmente em paz.
       A sua experiência é muito semelhante a outras que ele já tinha escutado de pacientes mas sem grande crédito, com diversas explicações que a ciência tenta dar. Ainda que não haja respostas definitivas, a ciência abre as portas a um fenómeno que por ora não tem explicação. O Dr. Alexander encontra a explicação que falta à ciência no outro lado.
       À volta da sua cama, durante sete dias, sempre pessoas, que não lhe largam a mão. Um dos filhos, o mais novo, ao sétimo dia, e enquanto a equipa médica, com a família, decide interromper os tratamentos, salta em cima da cama, abre as pálpebras, garantindo ao pai que vai ficar bom. De repente abre os olhos. Junta-se a mãe/esposa, e os médicos. Responde aos presentes: estou bem. Que é que aconteceu, porque é que está aqui tanta gente? O cérebro reiniciou funções. Nas horas e dias seguintes haverá uma grande confusão na sua mente. Pouco a pouco recuperar totalmente, preparando-se para falar do outro mundo, da luz à qual foi conduzido. Da verdade revelada: És amado. O envio: ainda és necessário. Tens de regressar. Alguém precisa de ti.
       O filho mais velho recomenda que antes de ler outros testemunhos e para ser levado a sério que escreva tudo o que se lembra e só depois confronte com outros testemunhos. É o que faz.
       O livro resulta desta experiência de 7 dias em coma profundo, em que a infecção por E. Coli, que dificilmente afeta os adultos, lhe provocaria a morte, ou o deixava com grandes sequelas físicas e mentais, afinal revela-lhe o Céu, a eternidade, e que a consciência sobrevive para lá do corpo, depois da morte, já sem fronteiras. Como em outros casos é difícil traduzir em palavras humanas a grandeza e a beleza das experiências sobrenaturais.
       Um dos livros mais conhecidos sobre experiências de quase morte é A vida depois da Vida, de Raymond Moody, que que resultou em documentários televisivos. Já recomendámos outros testemunhos: O Céu existe mesmo, um menino que regressa do Céu, ou A Cabana, de Paul Young, uma história que relata uma história semelhante.
       Ao longo dos tempos, muitos tentam compreender estes fenómenos. Para uns, é uma das formas do cérebro lidar com situações extremas. Para outros, é uma prova ou um indício que a consciência sobrevive à morte. Há vida para lá da morte.
       Uma última palavra para sublinhar a perspetiva católica sobre o Céu. Fé na vida eterna. Pessoas ou santos que viveram experiências místicas e que relatam visões, de Jesus, de Nossa Senhora, de Anjos, do Céu, do Inferno e/ou Purgatório, como no caso dos Pastorinhos de Fátima. Em todo o caso, a Ressurreição coloca-nos no plano da fé. A prova é sobretudo um indício, uma porta aberta, uma luz que nos guia. Uma coincidência da qual Deus se serve para manifestar a Sua vontade e a Sua presença. Nunca poderá ser visto como uma prova irrefutável. A fé é DOM, não é clarividência física e/ou científica. Deixaria de ser fé, para ser uma realidade demonstrável.
       Este livro traz um excelente testemunho de fé na vida eterna, do Amor que Deus nos tem. Mostra também a força da oração e como a própria cura necessita de algo mais que medicamentos, a presença dos amigos, a reconciliação consigo mesmo. É uma leitura envolvente.

Visite também: São as vozes que mandam

quinta-feira, 22 de agosto de 2013

Lumen Fidei - a fé, a verdade e o amor

       A fé transforma a pessoa inteira, precisamente na medida em que ela se abre ao amor; é neste entrelaçamento da fé com o amor que se compreende a forma de conhecimento própria da fé, a sua força de convicção, a sua capacidade de iluminar os nossos passos. A fé conhece na medida em que está ligada ao amor, já que o próprio amor traz uma luz. A compreensão da fé é aquela que nasce quando recebemos o grande amor de Deus, que nos transforma interiormente e nos dá olhos novos para ver a realidade...
       De facto, aos olhos do homem moderno, parece que a questão do amor não teria nada a ver com a verdade; o amor surge, hoje, como uma experiência ligada, não à verdade, mas ao mundo inconstante dos sentimentos...
       Na realidade, o amor não se pode reduzir a um sentimento que vai e vem. É verdade que o amor tem a ver com a nossa afectividade, mas para a abrir à pessoa amada, e assim iniciar um caminho que faz sair da reclusão no próprio eu e dirigir-se para a outra pessoa, a fim de construir uma relação duradoura; o amor visa a união com a pessoa amada. E aqui se manifesta em que sentido o amor tem necessidade da verdade: apenas na medida em que o amor estiver fundado na verdade é que pode perdurar no tempo, superar o instante efémero e permanecer firme para sustentar um caminho comum. Se o amor não tivesse relação com a verdade, estaria sujeito à alteração dos sentimentos e não superaria a prova do tempo. Diversamente, o amor verdadeiro unifica todos os elementos da nossa personalidade e torna-se uma luz nova que aponta para uma vida grande e plena. Sem a verdade, o amor não pode oferecer um vínculo sólido, não consegue arrancar o «eu» para fora do seu isolamento, nem libertá-lo do instante fugidio para edificar a vida e produzir fruto.
       Se o amor tem necessidade da verdade, também a verdade precisa do amor; amor e verdade não se podem separar.
       Sem o amor, a verdade torna-se fria, impessoal, gravosa para a vida concreta da pessoa. A verdade que buscamos, a verdade que dá significado aos nossos passos, ilumina-nos quando somos tocados pelo amor. Quem ama, compreende que o amor é experiência da verdade, compreende que é precisamente ele que abre os nossos olhos para verem a realidade inteira, de maneira nova, em união com a pessoa amada. Neste sentido, escreveu São Gregório Magno que o próprio amor é um conhecimento, traz consigo uma lógica nova. Trata-se de um modo relacional de olhar o mundo, que se torna conhecimento partilhado, visão na visão do outro e visão comum sobre todas as coisas. Na Idade Média, Guilherme de Saint Thierry adopta esta tradição, ao comentar um versículo do Cântico dos Cânticos no qual o amado diz à amada: «Como são lindos os teus olhos de pomba!» (Ct 1, 15). Estes dois olhos — explica Saint Thierry — são a razão crente e o amor, que se tornam um único olhar para chegar à contemplação de Deus, quando a inteligência se faz «entendimento de um amor iluminado».
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 26-27)

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

Lumen Fidei - a fé e a verdade

       O homem precisa de conhecimento, precisa de verdade, porque sem ela não se mantém de pé, não caminha. Sem verdade, a fé não salva, não torna seguros os nossos passos. Seria uma linda fábula, a projecção dos nossos desejos de felicidade, algo que nos satisfaz só na medida em que nos quisermos iludir; ou então reduzir-se-ia a um sentimento bom que consola e afaga, mas permanece sujeito às nossas mudanças de ânimo, à variação dos tempos, incapaz de sustentar um caminho constante na vida. Se a fé fosse isso, então o rei Acaz teria razão para não jogar a sua vida e a segurança do seu reino sobre uma emoção. Mas não é! Precisamente pela sua ligação intrínseca com a verdade, a fé é capaz de oferecer uma luz nova, superior aos cálculos do rei, porque vê mais longe, compreende o agir de Deus, que é fiel à sua aliança e às suas promessas.

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 24)

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Haruki Murakami: as pessoas estão sempre a morrer

       "...a vida do ser humano é breve, e muito mais frágil do que se imagina. As pessoas estão sempre e a morrer. Por isso, devemos tratar os outros de forma a não dar azo a grandes arrependimentos. De maneira justa e, se possível, com a máxima sinceridade. Eu, pessoalmente, não aprecio aqueles que não se esforçam quando têm oportunidade para isso e depois ficam a chorar baba e ranho e a torcer as mãos pelos cantos, cheios de remorsos, quando morre alguém".

Haruki Murakami, Dança, Dança, Dança. Casa das Letras, Cruz Quebrada: 2008.

Lumen Fidei - a fé em dinámica eclesial

       O crente aprende a ver-se a si mesmo a partir da fé que professa. A figura de Cristo é o espelho em que descobre realizada a sua própria imagem. E dado que Cristo abraça em Si mesmo todos os crentes que formam o seu corpo, o cristão compreende-se a si mesmo neste corpo, em relação primordial com Cristo e os irmãos na fé...
        A fé tem uma forma necessariamente eclesial, é professada partindo do corpo de Cristo, como comunhão concreta dos crentes. A partir deste lugar eclesial, ela abre o indivíduo cristão a todos os homens. Uma vez escutada, a palavra de Cristo, pelo seu próprio dinamismo, transforma-se em resposta no cristão, tornando-se ela mesma palavra pronunciada, confissão de fé...
        A fé não é um facto privado, uma concepção individualista, uma opinião subjectiva, mas nasce de uma escuta e destina-se a ser pronunciada e a tornar-se anúncio...
       A fé torna-se operativa no cristão a partir do dom recebido, a partir do Amor que o atrai para Cristo (cf. Gl 5, 6) e torna participante do caminho da Igreja, peregrina na história rumo à perfeição.

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 22)

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Lumen Fidei - a fé centra-se em Cristo

       A nova lógica da fé centra-se em Cristo. A fé em Cristo salva-nos, porque é n’Ele que a vida se abre radicalmente a um Amor que nos precede e transforma a partir de dentro, que age em nós e connosco...
       Cristo desceu à terra e ressuscitou dos mortos: com a sua encarnação e ressurreição, o Filho de Deus abraçou o percurso inteiro do homem e habita nos nossos corações por meio do Espírito Santo. A fé sabe que Deus Se tornou muito próximo de nós, que Cristo nos foi oferecido como grande dom que nos transforma interiormente, que habita em nós, e assim nos dá a luz que ilumina a origem e o fim da vida, o arco inteiro do percurso humano.
       O crente é transformado pelo Amor, ao qual se abriu na fé; e, na sua abertura a este Amor que lhe é oferecido, a sua existência dilata-se para além dele próprio... Na fé, o «eu» do crente dilata-se para ser habitado por um Outro, para viver num Outro, e assim a sua vida amplia-se no Amor. É aqui que se situa a acção própria do Espírito Santo: o cristão pode ter os olhos de Jesus, os seus sentimentos, a sua predisposição filial, porque é feito participante do seu Amor, que é o Espírito; é neste Amor que se recebe, de algum modo, a visão própria de Jesus. Fora desta conformação no Amor, fora da presença do Espírito que o infunde nos nossos corações (cf. Rm 5, 5), é impossível confessar Jesus como Senhor (cf. 1 Cor 12, 3).

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 20-21)

domingo, 18 de agosto de 2013

Lumen Fidei - a salvação pela fé...

        É precisamente aqui que se situa o cerne da polémica do Apóstolo com os fariseus: a discussão sobre a salvação pela fé ou pelas obras da lei. Aquilo que São Paulo rejeita é a atitude de quem se quer justificar a si mesmo diante de Deus através das próprias obras; esta pessoa, mesmo quando obedece aos mandamentos, mesmo quando realiza obras boas, coloca-se a si própria no centro e não reconhece que a origem do bem é Deus. Quem atua assim, quem quer ser fonte da sua própria justiça, depressa a vê exaurir-se e descobre que não pode sequer aguentar-se na fidelidade à lei; fecha-se, isolando-se do Senhor e dos outros, e, por isso, a sua vida torna-se vã, as suas obras estéreis, como árvore longe da água. Assim se exprime Santo Agostinho com a sua linguagem concisa e eficaz: «Não te afastes d’Aquele que te fez, nem mesmo para te encontrares a ti». Quando o homem pensa que, afastando-se de Deus, encontrar-se-á a si mesmo, a sua existência fracassa (cf. Lc 15, 11- -24). O início da salvação é a abertura a algo que nos antecede, a um dom originário que sustenta a vida e a guarda na existência. Só abrindo-nos a esta origem e reconhecendo-a é que podemos ser transformados, deixando que a salvação actue em nós e torne a vida fecunda, cheia de frutos bons. A salvação pela fé consiste em reconhecer o primado do dom de Deus, como resume São Paulo: «Porque é pela graça que estais salvos, por meio da fé. E isto não vem de vós, é dom de Deus» (Ef 2, 8).
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 19 )

Lumen Fidei - Jesus Aquele que explica Deus

       A plenitude a que Jesus leva a fé possui outro aspecto decisivo: na fé, Cristo não é apenas Aquele em quem acreditamos, a maior manifestação do amor de Deus, mas é também Aquele a quem nos unimos para poder acreditar. A fé não só olha para Jesus, mas olha também a partir da perspectiva de Jesus e com os seus olhos: é uma participação no seu modo de ver. Em muitos âmbitos da vida, fiamo-nos de outras pessoas que conhecem as coisas melhor do que nós: temos confiança no arquitecto que constrói a nossa casa, no farmacêutico que nos fornece o remédio para a cura, no advogado que nos defende no tribunal. Precisamos também de alguém que seja fiável e perito nas coisas de Deus: Jesus, seu Filho, apresenta-Se como Aquele que nos explica Deus (cf. Jo 1, 18). A vida de Cristo, a sua maneira de conhecer o Pai, de viver totalmente em relação com Ele abre um espaço novo à experiência humana, e nós podemos entrar nele.

Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 18)

Lumen Fidei - amor que vence a morte

       Se o amor do Pai não tivesse feito Jesus ressurgir dos mortos, se não tivesse podido restituir a vida ao seu corpo, não seria um amor plenamente fiável, capaz de iluminar também as trevas da morte.
       ... Jesus pôde vencer a morte e fazer resplandecer em plenitude a vida. A nossa cultura perdeu a noção desta presença concreta de Deus, da sua acção no mundo; pensamos que Deus Se encontra só no além, noutro nível de realidade, separado das nossas relações concretas. Mas, se fosse assim, isto é, se Deus fosse incapaz de agir no mundo, o seu amor não seria verdadeiramente poderoso, verdadeiramente real e, por conseguinte, não seria sequer verdadeiro amor, capaz de cumprir a felicidade que promete. E, então, seria completamente indiferente crer ou não crer n’Ele. Ao contrário, os cristãos confessam o amor concreto e poderoso de Deus, que actua verdadeiramente na história e determina o seu destino final; um amor que se fez passível de encontro, que se revelou em plenitude na paixão, morte e ressurreição de Cristo.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 17)

sábado, 17 de agosto de 2013

XX Domingo do Tempo Comum - ano C - 18 de agosto

       1 – De que é que precisamos para nos sentirmos realizados? O que é mais importante no nosso dia-a-dia? O que é imprescindível para sermos felizes e nos considerarmos pessoas?
       Ao longo dos últimos domingos, Jesus tem exposto as prioridades para o discipulado. O essencial para nos inserirmos no Seu projeto, e consequentemente, num caminho que nos guie para uma felicidade duradoura, dignificante, e verdadeiramente humana, dentro do Reino de Deus, é a fé, a caridade, ou a fé que se concretiza e traduz pelo serviço, pela partilha, pela conciliação, dando primazia aos bens espirituais, colocando Deus em primeiro lugar para n’Ele descobrimos os outros como irmãos, acolhendo sobretudo os mais frágeis.
       Ele próprio assume esta opção preferencial, como inclusão de todos, para que os excluídos sejam incluídos, para que os pobres tenham instrumentos para um trabalho honesto e as condições para viver dignamente, para que todos os que são descriminados pela raça, pela religião, pelo género, sejam assumidos como filhos de Deus. Ouvíamos as palavras inequívocas de Jesus: acolher Deus como tesouro e n'Ele colocar o nosso coração, a nossa vida. Quem se sente salvo por Deus, em Jesus Cristo, pelo Espírito Santo, não poderá deixar de testemunhar com alegria, procurando que outros se deixem contagiar por este AMOR, esta PRESENÇA, na certeza que o dom da fé só o é verdadeiramente se nos compromete na caridade. O DOM (recebido) é para ser dado (e não retido ou usurpado).
       2 – Jesus traz-nos Deus. Ele mesmo é Deus, Filho Bem-amado, assumindo-nos como irmãos. Traz-nos a eternidade. É PORTA que torna acessível o Coração de Deus para cada um de nós. É o Príncipe da Paz. O seu messianismo assenta na graça de Deus, no amor sem limites para a redenção de todos os pecadores. Os pilares do Seu reino são o amor, a justiça e a paz.
       Curiosamente, as palavras do Evangelho para este domingo parecem apontar noutro sentido:
«Eu vim trazer o fogo à terra e que quero Eu senão que ele se acenda? Tenho de receber um baptismo e estou ansioso até que ele se realize. Pensais que Eu vim estabelecer a paz na terra? Não. Eu vos digo que vim trazer a divisão. A partir de agora, estarão cinco divididos numa casa: três contra dois e dois contra três. Estarão divididos o pai contra o filho e o filho contra o pai, a mãe contra a filha e a filha contra a mãe, a sogra contra a nora e a nora contra a sogra».
       Aparentemente, Jesus traz a divisão, o conflito, o fogo. Voltemos a ler o evangelho. Neste e noutros ambientes, Jesus assume as dificuldades em propagar o Evangelho, a verdade, na denúncia da hipocrisia, da falsidade, do abuso do poder civil e religioso, relevando a priorização do serviço, em todas as dimensões da vida social, política e religiosa. As suas palavras geram respostas diferentes. Aqui e além são alimento que salva, mas também geradoras de discussões, de irritação e revolta. Desde o início, na Sinagoga de Nazaré, a terra em que foi criado, que Jesus experimenta variadas reações, destacando-se a incredulidade de muitos e a vontade de O expulsarem da sinagoga e da cidade, querendo mesmo precipitá-l'O do alto da colina. Mais à frente há de dar contas da Sua postura, com injúrias, acusações, com a prisão, os açoites e a morte.
       «Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz. Não é como a dá o mundo, que Eu vo-la dou. Não se perturbe o vosso coração nem se acobarde» (Jo 14, 27). Ele vem para nos redimir, chamando-nos a dar o melhor de nós, a darmos Deus aos outros. Isto é algo que inquieta, que perturba, que não nos pode deixar sossegados no nosso canto, com as nossas coisas, na nossa capelinha, achando que já fazemos mais do que nos é pedido. Em Cristo, tudo o que fizermos é pouco. Somos servos inúteis se fizermos o que nos compete. É a nossa vida. A nossa salvação. O que nos inquieta é também o que nos traz a paz de Jesus. Paz comprometida com os outros, pró-ativa, ao jeito de Maria, na atenção cuidada às necessidades alheias, respondendo mesmo antes de nos ser solicitado.
        3 – A prossecução deste desiderato pode trazer-nos dissabores, incompreensões, e por vezes até insegurança e desânimo. Nem tudo correrá como esperado. Acontece com Jesus. Também Ele sente a incompreensão, a começar por aqueles que tinham maior obrigação de compreender, de acolher e de O seguir. Os Apóstolos, sempre que detetam o perigo, escondem-se atrás d’Ele, ou desviam-se do caminho, mantêm-se à distância e fogem, negam, fecham-se em casa.
       Hoje como ontem. Com Jesus como no tempo dos profetas. Remar contra a maré não é fácil. Muito mais fácil é desistir, deixar-nos ir na corrente, até onde nos levar. Perder-nos-emos, a corrente levar-nos-á a outros destinos; tornar-nos-emos vítimas das circunstâncias. Conduzir-nos-ão por atalhos, talvez mais fáceis, talvez libertos de ondas e tempestades, mas será a vida dos outros não a nossa vida, não a nossa felicidade. Esta conquista-se, vive-se, com o nosso esforço e dedicação, com os nossos fracassos e desencontros, na descoberta da verdade que liberta e da caridade que preenche a alma.
       Jeremias, na primeira leitura, experimenta a perseguição, a calúnia, a tortura, a ameaça de morte. Chamado e enviado por Deus, a Sua palavra é fogo, é como espada de dois gumes, que denuncia a prepotência, os desvios dos mandamentos, a idolatria, o poder abusivo do rei, contrapondo com a vontade de Deus. O rei é também ungido do Senhor, por conseguinte deverá servir não os propósitos pessoais, mas o povo de Deus, promovendo a inclusão de todos, sobretudo os mais desfavorecidos. “Os ministros disseram ao rei de Judá: «Esse Jeremias deve morrer, porque semeia o desânimo entre os combatentes que ficaram na cidade e também todo o povo com as palavras que diz. Este homem não procura o bem do povo, mas a sua perdição». O próprio rei se deixa levar pela corrente. Não contrapõe. Fazei o que quiserdes. Lembra Pilatos. Daqui lavo as minhas mãos, é lá convosco.
       Eis que surge alguém com vida própria, com convicções, um estrangeiro, etíope, Ebed-Melec, que chama o rei à razão: «Ó rei, meu senhor, esses homens procederam muito mal tratando assim o profeta Jeremias: meteram-no na cisterna, onde vai morrer de fome, pois já não há pão na cidade». O rei altera o mal feito: «Leva daqui contigo três homens e retira da cisterna o profeta Jeremias, antes que ele morra». Não embarquemos nas tendências gerais, pelo menos, sem refletirmos seriamente.

       4 – Na convocação do Ano da Fé, Bento XVI, na Carta Porta da Fé, diz-nos que “será decisivo repassar, durante este Ano, a história da nossa fé, que faz ver o mistério insondável da santidade entrelaçada com o pecado. Enquanto a primeira põe em evidência a grande contribuição que homens e mulheres prestaram para o crescimento e o progresso da comunidade com o testemunho da sua vida, o segundo deve provocar em todos uma sincera e contínua obra de conversão para experimentar a misericórdia do Pai, que vem ao encontro de todos”.
       Acolha-se o testemunho de homens e mulheres que se tornaram boas notícias para os seus coetâneos, deixando-se transformar e transportar pela fé. Olhar fixo em Jesus Cristo. Pela fé, a Virgem Maria acolheu o desafio de Deus e colocou-Se a caminho; os Apóstolos deixaram tudo para O seguir; os discípulos formaram as primeiras comunidades; pela fé, o testemunho dos mártires e de tantos homens e mulheres que se consagraram na docilidade do Espírito; tantos cristãos se comprometeram e comprometem com a justiça social; pela fé, tantos e tantas que nos legaram a alegria de seguir Jesus, ilustrando a beleza do Evangelho. “Pela fé, diz-nos Bento XVI, vivemos também nós, reconhecendo o Senhor Jesus vivo e presente na nossa vida e na história”.
       É também esta dinâmica em que se insere na Carta aos Hebreus:
“Estando nós rodeados de tão grande número de testemunhas, ponhamos de parte todo o fardo e pecado que nos cerca e corramos com perseverança para o combate que se apresenta diante de nós, fixando os olhos em Jesus, guia da nossa fé e autor da sua perfeição. Renunciando à alegria que tinha ao seu alcance, Ele suportou a cruz, desprezando a sua ignomínia, e está sentado à direita do trono de Deus. Pensai n’Aquele que suportou contra Si tão grande hostilidade da parte dos pecadores, para não vos deixardes abater pelo desânimo”.
       5 – Questionemo-nos de novo: o que verdadeiramente nos faz felizes? O dinheiro? Os bens materiais? Sermos melhores que os outros? A amizade? A família? Os afetos? O bem que fazemos? A imagem que os outros têm de nós? O que é que nos dignifica? O nome e a honra que impusemos? A verdade da nossa vida? A honestidade? O que vale mais, o mundo inteiro a nossos pés ou o trabalho honesto e dedicado e a ajuda que prestamos aos outros? Em que situações nos sentimos melhor? Como perguntava o Papa Francisco, no Brasil, em que pessoas nos miramos? Em Pilatos que lava as mãos e se coloca em atitude de indiferença? Ou em Maria que se apressa para casa de Isabel e em Caná intervém vigorosa junto de Jesus?

Textos para a Eucaristia (ano C): Jer 38, 4-6.8-10; Hebr 12, 1-4; Lc 12, 49-53.

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Lumen Fidei - ídolos

        Compreende-se assim que o ídolo é um pretexto para se colocar a si mesmo no centro da realidade, na adoração da obra das próprias mãos. Perdida a orientação fundamental que dá unidade à sua existência, o homem dispersa-se na multiplicidade dos seus desejos; negando-se a esperar o tempo da promessa, desintegra-se nos mil instantes da sua história. Por isso, a idolatria é sempre politeísmo, movimento sem meta de um senhor para outro. A idolatria não oferece um caminho, mas uma multiplicidade de veredas que não conduzem a uma meta certa, antes se configuram como um labirinto. Quem não quer confiar- se a Deus, deve ouvir as vozes dos muitos ídolos que lhe gritam: « Confia-te a mim! » A fé, enquanto ligada à conversão, é o contrário da idolatria: é separação dos ídolos para voltar ao Deus vivo, através de um encontro pessoal. Acreditar significa confiar-se a um amor misericordioso que sempre acolhe e perdoa, que sustenta e guia a existência, que se mostra poderoso na sua capacidade de endireitar os desvios da nossa história. A fé consiste na disponibilidade a deixar-se incessantemente transformar pela chamada de Deus. Paradoxalmente, neste voltar-se continuamente para o Senhor, o homem encontra uma estrada segura que o liberta do movimento dispersivo a que o sujeitam os ídolos.
Papa Francisco, Lumen Fidei (n.º 13)

quinta-feira, 15 de agosto de 2013

Papa Francisco - o hoje de Jesus é tempo de esperança

       Hoje pedimos ao Senhor a graça de cuidar como Ele da fragilidade do nosso povo; no ano passado pedimos-lhe para sairmos à procura do nosso povo com audácia apostólica...
       A Igreja vive no Hoje de Jesus...
       Fora desse hoje - fora do tempo do Reino, tempo da graça, de boas notícias, de liberdade e de misericórdia -, os outros tempos, o tempo da política, o tempo da economia, o tempo da tecnologia, tendem a converter-se em tempos que devoram, que nos excluem, que nos oprimem. Quando os tempos humanos perdem a sua sintonia e tensão com o tempo de Deus, tornam-se estranhos: repetitivos, paralelos, demasiado curtos ou infinitamente longos. Tornam-se tempos cujos prazos não são humanos, os prazos da economia não têm em conta a fome ou a falta de escola para as crianças, nem a aflitiva situação dos idosos; o tempo da tecnologia é tão instantâneo e carregado de imagens que não deixa o coração e a mente dos jovens amadurecer; o tempo da política parece, às vezes, ser circular, como o de um carrossel em que são sempre os mesmos que apanham o anel. Pelo contrário, o hoje de Jesus, que à primeira vista pode parecer aborrecido e pouco emocionante, é um tempo em que se escondem todos os tesouros da sabedoria e da caridade, um tempo rico em amor, rico em fé e riquíssimo em esperança.
       O hoje de Jesus é um tempo com memória, memória de família, memória de povo, memória de Igreja em que está viva a recordação de todos os santos.
       A liturgia é a expressão desta memória sempre viva. O hoje de Jesus é um tempo carregado de esperança, de futuro e de céu, do qual já temos os sinal, e vivemo-lo adiantadamente em casa consolação que o Senhor nos dá. O hoje de Jesus é um tempo em que o presente é um constante chamamento e um renovado convite à caridade concreta do serviço quotidiano aos mais pobres que enche o coração de alegria. Nesse hoje queremos sair ao encontro do nosso povo, todos os dias.
       No hoje de Jesus não há lugar para o medo dos conflitos nem para a incerteza, nem para a angústia. Não há lugar para o medo dos conflitos, porque no hoje do Senhor «o amor vence o medo». Não há lugar para a incerteza, porque «o Senhor está em nós 'todos os dias' até ao fim do mundo. Não há lugar para a angústia, porque o hoje de Jesus é o hoje do Pai que «sabe muito bem do que necessitamos» e nas suas mãos sentimos que «a casa dia basta o seu cuidado». Não há lugar para ainquietação, porque o Espírito nos faz dizer e fazer o que é preciso no momento oportuno"
Missa Crismal 2005
in Jorge Bergoglio/Papa Francisco, O Verdadeiro poder é servir, pp 211-212

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Assunção da Virgem Santa Maria ao Céu - 15 de agosto

       1 – A meditação do Rosário conclui-se com dois mistérios referentes a Nossa Senhora, a Sua Assunção ao Céu, em corpo e alma, e a Sua Coração como Rainha do Céu e da Terra, dos Homens e dos Anjos. É esta dimensão da vida de Nossa Senhora que celebramos neste dia 15 de agosto, que por vontade expressa e manifesta de muitos portugueses se manteve feriado civil para melhor acentuar o DIA SANTO, para que os cristãos portugueses, emigrantes incluídos, pudessem aproveitar para celebrar a fé, honrando a Virgem Santa Maria, Mãe de Deus e Mãe nossa, o que acontece em diversas comunidades com as suas festas populares agendadas para esta data.
       O sensus fidei tornou-se crucial para esta tomada de decisão. Nas negociações com o governo português para a suspensão ou supressão de dois feriados religiosos, o dia 15 de agosto seria um dos sacrificados. Os Bispos portugueses receberam muitos pedidos para que este feriado se mantivesse. De alguma forma o mesmo sucedeu com o próprio dogma, primeiro acolhido pela fé do povo de Deus, desde sempre, e só em 1950 sancionado pelo Papa Pio XII. As comunidades cristãs entendiam que se Maria foi preservada de toda a mácula, também tinha que ser preservada da corrupção do túmulo, envolvida desde o primeiro instante com o mistério da morte e ressurreição de Jesus.
       Ela foi o Sacrário vivo para Jesus. Deus é Sacrário onde Se encontra Maria, junto de Jesus. Assumpta em Corpo e Alma, isto é, por inteiro, pois inteiramente Se entregou à vontade de Deus.
       2 – A ressurreição é o milagre maior da nossa fé, no qual se inscrevem todos os outros, desde a Imaculada Conceição da Virgem Mãe à Sua Assunção ao Céu, a Encarnação de Deus na história dos homens, e todos os prodígios realizados por Jesus ou pelos Seus discípulos.
       Toda a vida de Jesus traduz, transluz, concretiza a vontade do Pai, num projeto de reconciliação dos homens entre si e com Deus. Vem na plenitude dos tempos para nos trazer a plenitude do Amor paterno. A Sua vida, corpo e alma e sangue, é dádiva. A Cruz é sinal eloquente deste Amor que vai até ao fim, assumindo-nos totalmente para nos salvar por inteiro, também da morte. A Ressurreição coroa este projeto de vida nova no Espírito. Jesus assume e vive a vontade do Pai. Deus Pai assume o Filho e o Seu amor, para no-lo devolver no Espírito Santo.
       A liturgia da Palavra proposta para esta solenidade, é garantia desta promessa que se realiza em Jesus: “Cristo ressuscitou dos mortos, como primícias dos que morreram. Uma vez que a morte veio por um homem, também por um homem veio a ressurreição dos mortos; porque, do mesmo modo que em Adão todos morreram, assim também em Cristo serão todos restituídos à vida. Cada qual, porém, na sua ordem: primeiro, Cristo, como primícias; a seguir, os que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda”.
        O Apóstolo apresenta a ressurreição de Jesus como primícias. Ele é o primeiro, é a PORTA que se abre para nós, garantindo-nos a morada eterna junto de Deus. Nossa Senhora, por privilégio da graça divina, é elevada ao Céu, Ela que Se deu toda a Deus, Deus assume-A totalmente desde a concepção à ressurreição. Ela é «Sinal» de esperança e de alegria para todo o Povo de Deus, que peregrina pela terra em luta com o pecado e a morte, no meio dos perigos e dificuldades da vida. Com efeito, a Mãe de Jesus, «glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há de consumar no século futuro» (LG. 68).

       3 – Ela é coroada como Rainha. Uma Rainha que é Mãe da Igreja, da humanidade. No alto da Cruz Jesus no-l'A entregou por Mãe para que A levássemos connosco, para nossa casa, para a nossa vida, como discípulos amados.
       Com a morte de Jesus, Ela torna-se a guardiã da memória, da fé e da esperança congregando os discípulos, a Igreja, em espera orante. Chegada a sua hora, Deus eleva-A para que junto do Filho possa continuar a exercer o seu ministério de amor e intercessão.
“Apareceu no Céu um sinal grandioso: uma mulher revestida de sol, com a lua debaixo dos pés e uma coroa de doze estrelas na cabeça. Estava para ser mãe e gritava com as dores e ânsias da maternidade. Ela teve um filho varão, que há de reger todas as nações com cetro de ferro. O filho foi levado para junto de Deus e do seu trono e a mulher fugiu para o deserto, onde Deus lhe tinha preparado um lugar. E ouvi uma voz poderosa que clamava no Céu: «Agora chegou a salvação, o poder e a realeza do nosso Deus e o domínio do seu Ungido».
       Deus sempre nos socorre. A mulher sob a ameaça do dragão, que é símbolo de Maria e da Igreja. Deus vale-nos ainda que o mal pareça aniquilar-nos. Deus é mais forte, e não deixa que o mal nos devore.

       4 – Maria, no seu SIM traz-nos Deus feito Homem. Um sim que se concretiza na procura constante por realizar a vontade de Deus.
       “Enquanto Jesus falava à multidão, uma mulher levantou a voz no meio da multidão e disse: «Feliz Aquela que Te trouxe no seu ventre e Te amamentou ao seu peito». Mas Jesus respondeu: «Mais felizes são os que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática» (Lc 11, 27-28). No evangelho, proposto para a Missa da vigília, acentua-se a prioridade para a escuta da Palavra de Deus e o seu consequente cumprimento. Maria é feliz, bem-aventurada, porque acreditou, é feliz porque dessa forma Se torna Mãe de Deus, é feliz porque ousa responder ao amor de Deus com a pressa em ir ao encontro dos outros para auxiliar (Visitação), intercedendo (Bodas de Canã), mantendo a Igreja em vigilância (depois da morte de Jesus) à espera do que há de vir (o Ressuscitado). Agora junto de Deus, aos pés de Jesus, Seu amado Filho, Ela assume a mesma missão de intercessão, de desafio – fazei tudo o que Ele vos disser –, de medianeira das graças divinas, de Mãe que nos acolhe, nos protege e no Seu olhar nos assume como filhos e nos embala no tempo de dor. 
       “A Igreja – palavras do Papa Francisco no Santuário de Nossa Senhora da Aparecida, no Brasil – quando busca Cristo, bate sempre à casa da Mãe e pede: «Mostrai-nos Jesus». É de Maria que se aprende o verdadeiro discipulado".

        5 – Com os olhos postos no Alto, com a firmeza do peregrinar nesta terra, neste mundo e neste tempo, com a missão de sermos portadores da Salvação que nos é trazida em plenitude por Jesus, procurando imitar a Virgem Santa Maria, com a disponibilidade para escutar, para louvar, para nos integrarmos no Povo de Deus.
       Ela é herdeira desta história da salvação. Herança que, juntamente com São José, deposita em Jesus Cristo. A Sua oração coloca-a no coração do Povo de Deus, dando continuidade à profecia no Seu próprio Corpo, no Seu SIM:
«A minha alma glorifica o Senhor e o meu espírito se alegra em Deus, meu Salvador, porque pôs os olhos na humildade da sua serva: de hoje em diante me chamarão bem-aventurada todas as gerações. O Todo-Poderoso fez em mim maravilhas: Santo é o seu nome. A sua misericórdia se estende de geração em geração sobre aqueles que O temem. Manifestou o poder do seu braço e dispersou os soberbos. Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes. Aos famintos encheu de bens e aos ricos despediu de mãos vazias. Acolheu a Israel, seu servo, lembrado da sua misericórdia, como tinha prometido a nossos pais, a Abraão e à sua descendência para sempre».
       A oração integra o serviço, como facilmente se deduz do Evangelho. Maria vai apressadamente para ajudar a Sua prima Isabel, sem calculismos do tempo despendido, dos perigos do caminho, ou dos gastos a efetuar. Vai simplesmente. Por vocação. Por amor. Para servir. Para ser prestável. Leva com Ela o fruto do Seu ventre, Jesus, e começa a espalhar a alegria a todos os que Dela se aproximam. A oração fá-la permanecer junto de Isabel para a ajudar nos momentos mais difíceis da gravidez.
       Maria acolhe do Céu a Graça que n'Ela Se faz carne, mas rapidamente se põe a caminho da montanha, a uma cidade que pode também ser a nossa, para levar ajuda e a melhor ajuda é a PRESENÇA de Jesus.
       Como em vida, também agora como ressuscitada em Cristo Jesus, continua zelosamente a interceder por nós, a olhar para nós, a dar-nos Jesus, a elevar o nosso coração para Deus mostrando-nos o caminho através do serviço aos irmãos. Ela seguiu Jesus em vida e logo depois para a eternidade. Agora nós, sigamos Jesus Cristo para depois n’Ele sermos herdeiros da bem-aventurança eterna.

Textos para a Eucaristia: Ap 11, 19a; 12, 1-6a.10ab; 1 Cor 15, 20-27; Lc 1, 39-56.