domingo, 30 de março de 2014

Comunicação globalizada » Globalização da Indiferença

       Nunca como hoje os meios de comunicação social, mas também os meios de transporte, nos tornam tão vizinhos e no entanto continuamos distantes, talvez até mais que no passado.
       As pessoas conheciam os vizinhos pelo nome, tinham as portas abertas para quem chegava, e para saírem ao encontro dos outros. Qualquer necessidade poderia ser satisfeita com a ajuda do vizinho. Hoje temos as portas e janelas fechadas, não apenas as de casa mas também as do coração.
       No mesmo instante estamos em contacto com o fim do mundo, com alguém que não conhecemos de parte nenhuma mas que nos faz felizes por o vermos, por vermos o sucesso que tem ou nos entristecemos com os desaires daquele ator, daquela cantora, daquela pessoa que lançou uma campanha para ajudar um cão, ou daqueloutro que andou à batatada com a sogra.
       E à nossa volta? Tão perto e tão distantes. Passamos e andamos. E o “tudo bem” não é uma pergunta, é uma mera formalidade. Cumprimentamos alguém mas não queremos saber da pessoa. Talvez, como já o referimos por aqui, queiramos saber alguma coisa sobre ela, mas não o que sente, o que precisa, o que se passa na sua vida.
       Facilmente estamos em contacto com meio mundo. Trocamos mensagens, informações, o que gostamos, o que lemos, tantas centenas, milhares, de amigos virtuais, gastamos algum ou bastante tempo a postar belas frases, a sugerir pensamentos bem formulados, por vezes para os outros, não para nós, pois não precisamos. Porém, desconhecemos quem mora ao lado, o que faz, o que precisa. Desconhecemos o seu nome. Podemos até cruzar-nos com ele, ou embater contra ele, mas não nos toca. Podemos estar tão perto e tão longe uns dos outros. A aldeia é global, no conhecimento, na informação, na democratização cultural e religiosa, podemos até ser especialistas em bricolage e fabricar a nossa religião e a nossa ideologia. E diga-se que os meios de comunicação social, as redes que nos aproximam virtualmente, são uma oportunidade, um dom de Deus, ajudam a resolver problemas, a diagnosticá-los e formular soluções, a encontrar instrumentos para melhorar a vida uns dos outros, aproximam pessoas, ajudam a encontrar outras que desapareceram, facilitam campanhas de solidariedade, permitem a sensibilização para problemas atuais, de pessoas a animais e à natureza, e por vezes tribalizam-nos em alguns grupos de reflexão, de debate, de acusações, de críticas.
       Também o ambiente digital precisa de conversão e é necessário que não desfoque o nosso coração e o nosso olhar das pessoas que nos rodeiam e das suas necessidades. Porque é que as pessoas gritam, pergunta um discípulo ao seu Mestre. Não é pela surdez de algum deles, mas por terem o coração fechado, distante, alheado. Não conseguem escutar-se. Mutatis mutandis, a globalização económica, política, cultural e até religiosa, não corresponde à melhoria na vida das pessoas e não resolve as suas inquietações existenciais. Por outro lado, tem-se dado também a globalização da indiferença. São tantas as situações discutidas até à exaustão que já não chocam, já não emocionam. Não mobilizam. Já fazem parte do quotidiano. Este é um risco elevado.
       Temos os meios, há que colocar neles o nosso coração, o nosso compromisso. Não esperemos pelo ideal. Localizemo-nos, predispondo-nos a globalizar a caridade, a proximidade física e afetiva. Também isto é ser cristão, também por aqui a nossa conversão. A nossa visão tem diversas focalizações, pode ver bem ao longe e mal ao perto. Pode ver bem ao perto e esquecer o que vem lá. A árvore não nos impeça de ver a floresta, mas por causa desta não esqueçamos só existe porque há muitas árvores…

Publicado (abreviadamente) na VOZ DE LAMEGO, n.º 4257, de 25 de março de 2014

sexta-feira, 28 de março de 2014

Cardeal Gerhard Müller - A verdade leva-nos aos pobres

       "A Igreja, como comunhão dos fiéis, serve a humanidade com a Palavra de Deus, com a realização sacramental da sua salvação vivificante e a prova do ser-para-o-outro de Cristo, no serviço aos pobres, aos desamparados e à generalidade dos que foram defraudados na sua dignidade e justiça...
       A Igreja e, portanto, toda a comunidade cristã e cada cristão individualmente, a partir da fé, deve assumir responsabilidade pela sociedade humana como um todo, nos campos do mundo do trabalho, da economia internacional, da justiça social e individual, da paz no mundo" (p. 47).
       O Teólogo profissional, como perito em religião, não se contrapõe aos fiéis ou não especialistas. Ele entende-se, tal como todos os discípulos, como ouvinte e aprendiz diante do único Mestre e Palavra de Deus, isto é, Cristo. Desse modo, ele penetra no contexto da experiência da fé e da religiosidade da vida do povo, ou seja, da comunidade daqueles que professam a fé em Jesus Cristo e ousam percorrer o caminho do seu seguimento na existência - para os outros. Participa dos seus sofrimentos e das suas esperanças. Desse modo, Teologia da Libertação, no melhor sentido da palavra, é teologia contextual, amadurecida a partir da comunidade (p. 51)

       "A opção pelos pobres não exclui os ricos. De facto, também eles são meta do agir libertador de Deus, dado que são libertados da ansiedade ma qual julgam dever aproveitar a vida somente à custa dos outros. O agir libertador de Deus em relação a pobres e ricos visa a subjetivação do ser humano e, portanto, a sua liberdade perante toda a forma de opressão e de dependência" (p 56).

       "Como se pode falar de Deus, de Cristo, do Espírito Santo, da Igreja, dos sacramentos, da graça e da vida eterna perante a miséria, a exploração e a opressão do sr humano, no terceiro mundo, quando compreendemos o ser humano como uma criatura que é feita à imagem e semelhança de Deus, pela qual Cristo morreu, a fim de que ela, em todos os âmbitos da vida, experimentasse Deus como salvação e vida?... Deus é o Deus da vida e da salvação, na medida em que oferece e realiza a salvação e a vida no interior do único mundo criatural, social e histórico do ser humano, na unidade espiritual-corporal do ser humano" (p 105).

       "A experiência da exploração e a análise das suas circunstâncias históricas e sociais devem ser agora interpretadas à luz da revelação. Os testemunhos bíblicos mostram-nos Deus como o criador que escolhe a história enquanto lugar do seu agir libertador. A sua ação redentora liberta o ser humano não da história, mas para a história, como campo da efetivação das condições materiais adequadas ao ser humano para a sua realização como pessoa espiritual...
       A salvação não jaz simplesmente na interioridade da alma, que não seria atingida pelos chicotes egípcios. Aos israelitas oprimidos, também nãos e promete simplesmente um além-túmulo melhor, pensado objetivamente. Pelo contrário, a salvação acontece no agir libertador real de Deus, na retirada da escravidão... (p. 120).

       "A prática da verdade leva-nos para o lado dos pobres" p 204.

João Paulo II:
       "A fome de pão deve desaparecer, mas a fome de Deus permanecerá" p 53)
       "Que a fome de Deus permaneça e a fome de pão desapareça" p 154

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.

Gustavo Gutiérrez - Onde dormirão os pobres?

       "A teologia é um falar de Deus à luz da fé. O discurso acerca do que Ele é e o que Ele é para nós representa o único tema da teologia. Devemos aproximar-nos do mistério de Deus com temor e humildade" (p 30).

       "A teologia afunda sempre as suas raízes na densidade histórica do presente da fé...
       Com efeito, o futuro não chega, constrói-se; fazemo-lo com as nossas mãos e as nossas esperanças, os nossos fracassos e projetos, a nossa obstinação e a nossa sensibilidade ao novo (p 72-73)
Onde dormirão os pobres?
(texto publicado em 1996 e inserido no livro "Ao lado dos pobres", pp 135-198)

       "A fé é graça. Acolher esse dom é colocar-se atrás das pegadas de Jesus, pondo em prática os seus ensinamentos e continuando a sua proclamação do Reino. No ponto de partida de toda a teologia está o ato de fé. Pensar a fé é algo que surge espontaneamente no crente, na reflexão motivada pela vontade de tornar mais profunda e mais fiel a sua vida de fé. Esta, porém, não é assunto puramente individual: a fé é vivida sempre em comunidade. Ambas as dimensões - a pessoal e a comunitária . marcam quer a vivência da fé quer a inteligência dela.
       A tarefa teológica é uma vocação que surge e é exercida no seio da comunidade eclesial. Ela está ao serviço da missão evangelizadora da Igreja. Essa localização e essa finalidade dão-lhe o seu sentido e esboçam os seus alcances. A teologia é falar acerca de Deus animado pela fé. Deus é, na verdade, o primeiro e último tema da linguagem teológica... a abordagem teológica é sempre insuficiente... Evangelizar é anunciar com obras e palavras a salvação de Cristo... libertação do pecado vai ao próprio coração da existência humana, lá onde a liberdade de cada um aceita ou rejeita - em última instância - o amor gratuito e redentor de Deus, nada escapa à ação salvífica de Jesus Cristo. Esta alcança todas as dimensões humanas, pessoais e sociais, e nelas deixa a sua marcas.
       As teologias trazem, necessariamente, a marco do tempo e do contexto eclesial em que nascem" (pp 137-139).

       "Desde os sues começos, a Teologia da Libertação, que nasceu de uma intensa preocupação pastoral, esteve ligada à vida da Igreja, aos seus documentos, à sua celebração comunitária, à sua inquietude evangelizadora e ao seu compromisso libertador com a sociedade latino-americana, particularmente com os mais pobres dos seus membros. As conferências episcopais latino-americanas [CELAM] dessas décadas (Medellín, Puebla, Santo Domingo), numerosos textos de episcopados nacionais e outros documentos referendam esta asseveração, inclusive quando nos convidam a um discernimento crítico diante de afirmações infundadas e de posições que alguns pretendiam deduzir dessa perspetiva teológica...
       A reflexão da Igreja... Parece-me que a sua preocupação fundamental gira em redor da chamada opção preferencial pelo pobre. Ela organiza, aprofunda e, eventualmente, corrige muitos compromissos assumidos nestes anos, bem como as reflexões teológicas a eles vinculados. A opção pelo pobre é radicalmente evangélica, constitui, portanto, um critério importante para operar uma filtragem nos precipitados acontecimentos e nas correntes de pensamento dos nossos dia" (p 141).

       "O nosso é o único continente, maioritária e simultaneamente, pobre e cristão... três aceções do termo pobre: a) a pobreza real (chamada frequentemente de pobreza material), como estado escandaloso, não desejado por Deus; b) pobreza espiritual, como infância espiritual, que tem como uma das suas expressões, - não a única - o desprendimento perante os bens deste mundo; c) a pobreza como compromisso: solidariedade com o pobre e protesto contra a pobreza. (p 142)

       "Na raiz dessa opção está a gratuidade do amor de Deus. Esse é o fundamento último da preferência.
       O próprio termo «preferência» rejeita toda a exclusividade e procura ressalvar os que sevem ser os primeiros - não os únicos - na nossa solidariedade... universalidade do amor de Deus e a sua predileção pelos últimos da história.
       ... a opção pelo pobre é... uma opção pelo Deus do Reino anunciado por Jesus... esse compromisso baseia-se fundamentalmente na fé do Deus de Jesus Cristo. É uma opção teocêntrica e profética, que ficam as suas raízes na gratuidade do amor de Deus e é requerida por ela....
       O pobre deve ser preferido não porque seja necessariamente melhor do que outros, a partir do ponto de vista moral ou religioso, mas porque Deus é Deus. Toda a Bíblia está marcada pelo amor de predileção de Deus pelos fracos e maltratados da história humana" (p 143-144).

       "A economia moderna desafia as normas morais admitidas comummente, e não somente nos círculos que podemos chamar de tradicionais. A inveja, o egoísmo, a cobiça converteram-se em motores da economia; a solidariedade, a preocupação com os pobres são vistas, em contrapartida, como travões ao crescimento económico e são, finalmente, contraproducentes para alcançar uma situação de bem-estar de que todos possam, um dia beneficiar" (p 153)

       "As nações pobres jazem ao lado das nações ricas, ignoradas por estas; no entanto, é preciso acrescentar que o fosso entre ambas é cada vez maior. O mesmo acontece no interior de cada país. A população mundial coloca-se de modo crescente nos dois extremos do espetro económico e social.
       Por outro lado, e de forma surpreendente, no texto lucano (isto é, no Evangelho de São Lucas) o pobre tem um nome: Lázaro; o rico, o poderoso, pelo contrário, não tem. A situação atual é inversa: os pobres são anónimos e parecem fadados a um anonimato ainda maior, pois nascem e morrem sem se fazer notar. Peças descartáveis numa história que se lhes escapa das mãos e os exclui" (p 158).

       "... os pobres, insignificantes e excluídos, não são pessoas passivas, à espera de que alguém lhes estenda a mão. Não têm apenas carências; nelas fervilham muitas possibilidades e riquezas humanas. O pobre e o marginalizado da América Latina é, muitas vezes, possuidor de uma cultura com valores próprios e eloquentes, que vem da sua raça, da sua história, da sua língua. Tem energias como as demonstradas pelas organizações de mulheres, em todo o continente, em luta pela vida da sua família e do povo pobre, com uma imaginação e força criadora impressionantes para enfrentar crises.
       Para a grande parte dos pobres da América Latina, a fé cristã desempenhou um papel decisivo nessa atitude; foi fonte de inspiração e razão poderosa para se negar a perder a esperança no futuro" (p 164).

       "Os pobres viram-se, muitas vezes, manipulados por projetos que se pretendem globais, sem consideração pelas pessoas e pela sua vida quotidina, e que, devido à tensa orientação ao futuro, se esquecem do presente. No entanto, o pensamento pós-moderno não se limita a isso: solapa também todo o sentido da história, e isso repercurte-se sobre o significado a ser conferido a acada exstência humana...
       ... Numa perspetiva cristã, a história tem o seu centro na vinda do Filho, na Encarnação, sem que isso queira signifciar que a história human avança ineludivelmente seguindo os sulcos traçados e dominados por um férreo pensamento regente. Jesus Cristo, como centro da história, é igualmente Caminho (cf. Jo 14, 5) para o Pai, movimento que dá sentido à existência humana a que todos estamos chamados. Essa vocação confere plena densidade ao presente, ao hoje... (pp 170-171).

       "... a razão última do compromisso com os pobres não reside nas suas qualidades morais ou religiosas - posto que elas existem -, mas na bondade de Deus, que deve inspirar a nossa própria conduta" (p 181).

       "O diálogo implica interlocutores conscientes da sua própria identidade. A fé cristã e a teologia não podem renunciar às suas fontes e à sua personalidade para entrar em contacto com outros pontos de vista. Ter convicções firmes não é obstáculo ao diálogo; é, antes, uma condição necessária. Acolher não por mérito próprio, mas por graça de Deus, a verdade de Jesus Cristo nas nossas vidas não somente não invalida o nosso trato com pessoas de outras persptetivas, as confere-lhes o seu autêntico sentido. Perante a perar de referências que alguns parecem viver, é importante recordar que a identidade humilde e aberta, é um componente essencial de uma espiritualidade...
       ...a capacidade de ouvir os outros é tanto maior quanto mais firme for a nossa convicção e mais transparente a nossa identidade cristã" (pp 186-187)

       "Devo confessar que estou menos preocupado pelo interesse ou pela sobrevivência da Teologia da Libertação do que pelos sofrimentos e pelas esperanças do povo a que pertenço, e especialmente pela comunciação da experiência e da mensagem de salvação de Jesus Cristo. Esta última é a matéria da nossa caridade e da nossa fé. Uma teologia, por mais relevante que seja o seu papel, não passa de um meio para o aprofundamento nesse amor e nessa fé. Por essa razão, trata-se, efetivamente, de proclamar a esperança ao mundo no momento que vivemos como Igreja" (p 198).

in GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres.

quinta-feira, 27 de março de 2014

LEITURAS: Giulio Viviani - Porque Jejuamos?

GIULIO VIVIANI. Porque Jejuamos? A prática do jejum e da abstinência na Igreja de hoje. Paulus Editora. Lisboa 2013. 112 páginas.
       Um livro é um pouco como as pessoas, não se mede aos palmos. Este é um pequeno livro mas muito curioso, abordando o tema do jejum e da abstinência (de carne) de uma forma simples, fundamentada, acessível, de fácil compreensão. Parte do texto de Isaías, que dá o título ao original italiano: «Para quê jejuar, se Vós não fazeis caso? Para quê humilhar-nos, se não prestais atenção?» (Is 58, 3). A resposta do Senhor é elucidativa: "É porque no dia do vosso jejum só cuidais dos vossos negócios, e oprimis todos os vossos empregados. Jejuais entre rixas e disputas, dando bofetadas sem dó nem piedade... O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente, livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão. Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente, e a glória do Senhor atrás de ti" (Is 58, 1-12).
       Esta crítica estará também no discurso de Jesus quando se refere a algumas práticas exteriores, rituais, que, embora respeitando a Lei, não aproxima as pessoas. O melhor jejum será sempre a bondade, a misericórdia, o serviço ao irmão. Ou dito de outra maneira, o jejum e a prática da abstinência (bem assim a oração e a esmola) deverão ser acompanhadas por uma conversão efetiva a Deus e de Deus para os irmãos.
       O autor fundamenta a relevância do Jejum e da Abstinência na Sagrada Escritura, na Tradição da Igreja, no Magistério papal. Desde logo o jejum de Jesus, durante 40 dias e 40 noites, no deserto, antes de iniciar a vida pública. Por outro a resposta dada alguns fariseus quando ao facto de os discípulos não jejuarem. A resposta é evidente: não jejuam por agora, enquanto o noivo está com eles, quando o noivo lhes for tirado então jejuarão (cf. Mc 2, 18-22).
       Alguns documentos importantes revisitados pelo autor: Constituição Apostólica Paenitemini, do Papa Paulo VI, Catecismo da Igreja Católica, Código de Direito Canónico, Normas para o jejum e abstinência, da Conferência Episcopal Portuguesa (28 de janeiro de 1985), e Nota Pastoral O sentido cristão do jejum e da abstinência, da Conferência Episcopal Italiana (4 de outubro de 1994).
       Na atualidade verifica-se, de algum modo, uma certa indiferença em relação a estas práticas, que se acentuam sobretudo na Quaresma. Por um lado, a própria Igreja mitigou as orientações, para sublinhar que a salvação era dom de Deus, afastando de novo algumas conceções farisaicas: a salvação resultaria sobretudo do esforço humano e do sacrifício, das práticas instituídas. A Igreja, fiel a Jesus, quis e quer, que as práticas exteriores, do jejum, oração e esmola, seja sobretudo um sinal de conversão, de adesão à vontade de Deus, de mudança efetiva na vida pessoa, familiar, comunitária, sejam oportunidades na Quaresma mas para se estenderem a todo o ano. Por outro lado, o Jejum e a abstinência não podem ser separadas, nunca, do serviço concreto ao próximo. Não se jejua hoje para amanhã comer mais, ou se poupa hoje para amanhã gastar mais, mas que a poupança, no jejum e abstinência possam reverter a favor dos mais necessitados. Aliás, estas práticas visam fazer-nos sensibilizar para as carências de outras, que não têm que comer, que vestir, não têm o mínimo necessário para sobreviver com dignidade.
       Um dos aspetos cuja reflexão me surpreendeu anda à volta da ABSTINÊNCIA e concretamente de CARNE. Obviamente, e o documento da Conferência Episcopal Portuguesa é claro, mas também outras intervenções do magistério episcopal e papal, a abstinência poderá ser de um alimento ou algo que nos agrade muito: do tabaco, de café, de andar de carro, de doces, beber água da torneira e abster-se de beber água engarrafada. Cada família, comunidade, ou cada região, poderá refletir e propor um jejum e/ou abstinência que seja sinal para aquela realidade. No entanto, a Abstinência de Carne poderá ser um sinal com raízes muito significativas.
       Em Sexta-feira Santa, Jesus ofereceu a Sua Carne por nós. A abstinência e o jejum e a oração e a esmola, são práticas pascais, para melhor nos associarem à paixão redentora de Jesus. Daí se recomende a abstinência em todas as sextas-feiras, especialmente na Quaresma. Configurados à oferenda de Jesus, em Sexta-feira só deveríamos COMER a CARNE de Jesus e não outra carne. Belíssimo. Nunca tinha encontrado uma explicação tão justa e luminosa como esta. Até o jejum eucarístico (uma hora antes de comungar) poderá aqui encontrar uma explicação válida: não misturar o ALIMENTO com outros alimentos, valorizando o verdadeiro Pão da Vida.
       Outro argumento, igualmente preponderante, o facto da abstinência de carne poder ser um SINAL cristão no mundo atual. A abstinência pode adquirir outras modalidades, mas havendo uma comum a todos os cristãos e a todas as comunidades funcionará melhor como sinal. Nas cantinas da escola, ou nos restaurantes, há uma alimentação própria para vegetarianos, para judeus. Os muçulmanos sinalizam o Ramadão em público... então por que não os cristãos proporem o SINAL, não comendo carne à sexta-feira, oportunidade para sublinharem as razões da sua fé.
       Obviamente que esta prática não recusa a abstinência de outros alimentos ou situações, a nível pessoal, familiar e/ou comunitário. Mas um SINAL comum dos cristãos seria bem vindo. Parece que só os sinais dos cristãos desaparecem, sem que ninguém se importe com isso. A fundamentação, contudo, está na identificação com Jesus Cristo e com o mistério da Sua morte e ressurreição.
       Diga-se também que o não comer carne não significa que se deva comer peixe... O autor conta uma pequena história em que uma senhora o terá abordado para dizer que as leis da Igreja eram um disparate pois obrigavam a comer peixe nas sextas-feiras da Quaresma, quando o peixe era uma comida cara, uma comida para ricos, não levando em conta as pessoas com menos recursos. Em nenhum documento da Igreja se diz que a carne deva ser substituída por peixe. Hoje há muitos alimentos confeccionáveis que não exigem carne. Leite, ovos, queijo não entram na "proibição"/ recomendação de não se comer carne. E portanto será fácil preparar refeições sem carne.
       A abstinência é recomendada a partir dos 14 anos. O Jejum, a partir dos 21 anos, e em Portugal a partir dos 18 anos, e até aos 60 anos de idade. Dispensadas estão as pessoas doentes, as mulheres a amamentar, ou outras razões que justifiquem a dispensa. As crianças, sobretudo em idade de catequese, e as pessoas com 60 anos ou mais, podem também jejuar. A indicação para todos é que não ponha em causa a saúde da pessoa que jejua.
       Vale a pena uma leitura atenta e descontraída deste pequeno livro. 112 páginas, com o tamanho de um tablet de 7''.

quarta-feira, 26 de março de 2014

A Caridade na Verdade

"O amor - "caritas" - é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se com coragem e generosidade no campo da justiça e da paz" (1);
"A verdade é luz que dá sentido e valor á caridade" (3);
"A sociedade cada vez mais globalizada torna-nos vizinhos, mas não nos faz irmãos" (19);
"O primeiro capital a valorizar é o homem, a pessoa na sua integridade" (25);
"A acção é cega sem o saber, e este é estéril sem o amor" (30);
"Os custos humanos são também sempre económicos, e as disfunções económicas acarretam também sempre custos humanos" (32);
"O ser humano está feito para o dom, que exprime e realiza a sua dimensão de transcendência" (34);
"O desenvolvimento económico, social e político precisa, se quiser ser autenticamente humano, de dar espaço ao princípio da gratuidade como expressão da fraternidade" (34).
BENTO XVI, A Caridade na Verdade. Caritas in Veritate.
Recolha da revista Cidade Nova. Outubro 2009.

Ao lado dos Pobres - Teologia da Libertação

GUSTAVO GUTIÉRREZ e GERHARD LUDWIG MÜLLER. Ao lado dos Pobres. A Teologia da Libertação é uma Teologia da Igreja. Paulinas Editora. Prior Velho 2014. 208 páginas.
       Com a eleição do então Cardeal Jorge Mario Bergoglio, em 13 de março de 2013, escolhendo o nome de Francisco, em homenagem a Francisco de Assis, colocando o acento tónico na Igreja pobre e dos pobres, a Teologia da Libertação ganhou nova visibilidade. Longe vão os tempos em que a Teologia da Libertação esteve sob suspeita, sendo acusada, por ignorância e preconceito, de uma teologia marxista, partindo da análise socioeconómica, na persecução do mesmo objetivo da luta de classes.
       Desde logo, no centro da Teologia da Libertação, cuja paternidade tem um rosto de fidelidade à Igreja e ao Magistério, e fidelidade e compromisso com os pobres do Peru, sua terra natal, englobando toda a América Latina e Caribe, a opção preferencial pelos pobres, expressão acarinhada pelos Bispos locais em diversas Assembleias, é uma opção que decorre do amor gratuito e misericordioso de Deus pelos pobres, não pela bondade dos mesmos. Em Jesus, Deus que encarna e Se "localiza", os pobres têm lugar à mesa, hão de ser os primeiros a ser servidos. A Teologia da Libertação é verdadeira teologia, parte de Deus, do Evangelho, acolhe o magistério eclesial, colocando o enfoque precisamente na opção pelos pobres, não como adenda, mas como compromisso irrenunciável. Por outro lado, mesmo servindo-se das ciências humanas e sociais, da análise socioeconómica, não visa, como no marxismo, a troca de uma classe social por outra, mas a dignidade da pessoa humana, de todas as pessoas. A economia de mercado, a globalização da economia, na maioria das vezes não levou a melhorias da vida da maioria, mas sobretudo a abertura dos mercados emergentes para obrigar o escoamento dos produtos das nações mais ricas.
       Vê-se como o autor - não renunciando ao enfoque próprio da Teologia da Libertação, mostrando com clareza que toda a teologia tem em conta a particularidade, a começar pelo próprio Jesus, judeu de nascimento - mantém uma pose de grande humildade e abertura, explicando uma ou outra vez, sublinhando que o mais importância nem é a relevância da Teologia da Libertação, mas o serviço aos mais pobres.
       O Papa Francisco tem precisamente sublinhado como a Igreja deverá ir às periferias geográficas e sobretudo existenciais, tendo vindo também ele de uma periferia.
       A reflexão resultante do Concílio Vaticano II, sobretudo com a Constituição Gaudium et Spes, com a abertura da Igreja ao mundo e a necessidade de uma leitura atenta e atual aos sinais dos tempos, é precisamente berço para o nascimento da Teologia da Libertação, que procura ler e responder aos sinais de uma América Latina pobre, empobrecida, periférica. Gustavo Gutiérrez não se deixou enredar em polémicas e respondeu sempre com abertura às estruturas da Igreja, nomeadamente perante a Congregação para a Doutrina da Fé, com o então Cardeal Ratzinger, como o próprio [Ratzinger] a empenhar-se pessoalmente no diálogo frutuoso com o pai da Teologia da Libertação, acolhendo a riqueza deste património, cuidando para minorar os riscos de desvio e apropriação da Teologia da Libertação por algum regime ditatorial.
       Curiosamente, o parceiro desta publicação é o atual Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, Cardeal Gerhard Ludwig Müller (feito Cardeal no dia 21 de fevereiro de 2014, pelo Papa Francisco). Outra curiosidade, é que foi nomeado para Prefeito por Bento XVI, a 2 de julho de 2012, para substituir o cardeal norte-americano William Joseph Levada, por limite de idade.
        O próprio Gutiérrez sublinha o risco de alguns desvios teóricos e práticos da Teologia da Libertação, sem que seja essa a sua génese. No livro, Gerhard Müller, deixa claro que "o movimento eclesial e teológico latino-americano conhecido como "Teologia da Libertação", que se espalhou por outras partes do mundo depois do Concílio Vaticano II, deve, em minha opinião, ser incluído entre as correntes mais importantes da teologia católica do século XX".
       Continua a haver muitos críticos da Teologia da Libertação, que o fazem uma e outra vez por ignorância e preconceito. Mas também a polémica se gera do lado dos que arremessam com esta Teologia contra a Igreja e o Magistério. No entanto, a coletânea dos textos recolhidos neste livro, publicada em 2004, na Alemanha, mais os textos do de Gerhard Müller, afastam-se claramente de qualquer polémica, num equilíbrio ímpar. Sublinhe-se também, que durante a reflexão/análise na Congregação para a Doutrina da Fé, sob a batuta do então Cardeal Joseph Ratzinger, nunca o movimento foi criticado. Por outro lado, o Papa João Paulo II recorrerá por diversas vezes à linguagem nova que vem das Conferências Episcopais da América Latina e Caribe, reunidas em Medellín (1968), Puebla (1979), Santo Domingo (1992). A "opção preferencial pelos pobres" entra definitivamente no vocabulário da Igreja e a necessidade da Nova Evangelização enraíza-se precisamente nas Assembleias do episcopado latino-americano, sancionando a Teologia da Libertação. Posteriormente, a Assembleia da CELAM (Episcopado Latino-Americano) em Aparecida, no Brasil, em 2007, e tal como o fez João Paulo II, também Bento XVI lhe dirigiu palavras de estímulo num discurso muito cristológico.
       Para melhor compreender o que significa Teologia da Libertação, mas sobretudo a opção preferencial pelos pobres, que ao tempo de Cristo tinham nome - Lázaro -, e que agora são uma maioria sem nome e sem chão, este é um excelente texto, de fácil compreensão. O propósito da Teologia da Libertação, com um enfoque específico, visa o mesmo que toda a Teologia, que Cristo seja tudo em todos.

terça-feira, 25 de março de 2014

Bento XVI - o amor é gratuito

        «O amor é gratuito; não é realizado para alcançar outros fins. [30] Isto, porém, não significa que a acção caritativa deva, por assim dizer, deixar Deus e Cristo de lado. Sempre está em jogo o homem todo. Muitas vezes é precisamente a ausência de Deus a raiz mais profunda do sofrimento. Quem realiza a caridade em nome da Igreja, nunca procurará impor aos outros a fé da Igreja. Sabe que o amor, na sua pureza e gratuidade, é o melhor testemunho do Deus em que acreditamos e pelo qual somos impelidos a amar. O cristão sabe quando é tempo de falar de Deus e quando é justo não o fazer, deixando falar somente o amor. Sabe que Deus é amor (cf. 1 Jo 4, 8) e torna-Se presente precisamente nos momentos em que nada mais se faz a não ser amar. Sabe — voltando às questões anteriores — que o vilipêndio do amor é vilipêndio de Deus e do homem, é a tentativa de prescindir de Deus. Consequentemente, a melhor defesa de Deus e do homem consiste precisamente no amor. É dever das organizações caritativas da Igreja reforçar de tal modo esta consciência em seus membros, que estes, através do seu agir — como também do seu falar, do seu silêncio, do seu exemplo —, se tornem testemunhas credíveis de Cristo.

Bento XVI, Aprender a Acreditar. Carta Encíclica Deus Caritas est, n.º 31

Oração e desenvolvimento

"O desenvolvimento tem necessidade de cristãos
com os braços levantados para Deus
em atitude de oração,
cristãos movidos pela consciência de que o amor
cheio de verdade - caritas in veritate -,
do qual procede o desenvolvimento autêntico,
não o produzimos nós, mas é-nos dado".

Bento XVI, Caritas in Veritate, 79.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Encontro de Formação Juvenil, em Tabuaço

       No passado dia 22 de março, o Sdpj (Secretariado Diocesano da Pastoral Juvenil) de Lamego promoveu a segunda parte do Curso de  Curso de Animadores Juvenis (e não só), com o desafio: "Ide, sem medo, para servir". Se a primeira parte foi em Lamego, no Seminário Maior, esta realizou-se na Paróquia de Nossa Senhora da Conceição de Tabuaço. O programa foi preenchido, das 9h30 às 18h00, com momentos de oração, de reflexão, trabalho de grupo, plenários, almoço. Terminou da melhor forma, com a celebração da Santa Missa, na Igreja Paroquial, com a especial participação dos jovens na animação litúrgica.
       O Grupo de Jovens de Tabuaço (GJT) respondeu, de novo, de forma significativa com entusiasmo, dedicação e alegria nesta atividade juvenil, contando que ajudará a um compromissso mais efetivo na comunidade eclesial e na sociedade.
       Algumas fotos desta jornada:
Pode visualizar as restantes fotografias disponibilizadas na página do
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José Maria Cabral - O desafio da Normalidade

JOSÉ MARIA CABRAL. O Desafio da Normalidade. (Impressões do fim da vida). Rei dos Livros. Lisboa 1994, 2.ª Edição. 296 páginas.
       Ler um bom livro pode ajudar a abrir a mente e o coração, a pensar em ideias positivas, em deixar-se desafiar pela história vivida e contada em momentos de grande provação. Na parte final do livro Manuel Forjaz, Nunca desistas da Vida, que fizemos questão de ler e, após a leitura envolvente, achamos por bem sugerir, cujo testemunho do autor tinha como um dos propósitos incentivar outras pessoas com cancro a manter as rotinas, procurando manter a mesma agenda, fazer o que se costumava fazer, não alterar nem hábitos nem afazeres. Lembramo-nos então destoutro comovente testemunho. Lemo-lo há vários anos, lá para o ano de 1996. Depois disso voltamos a repescar algumas passagens.
       José Maria Cabral é médico, ligado precisamente à oncologia. Familiar e próximo de muitas pessoas com cancros e com cancros de muitas estirpes. No dia 8 de outubro de 1991, às três da tarde, no meio do trabalho, foi-lhe comunicado que sofria de uma doença maligna incurável (linfoma maligno). "O cancro parece representar o princípio do mal, a dissolução da unidade, a desindividualização. Por tudo isto e por razões mais obscuras, o cancro, entre outros males, constitui um verdadeiro desafio à normalidade".
       A primeira reação é de dor, de surpresa, de medo. A reflexão fá-lo fixar-se no outono, o declínio da natureza e do espírito. Como sempre, procura a calma serena. "Preparei a minha esperança para dar sentido a uma nova etapa da vida... Percebi a minha nudez... Sentia-me novo para morrer". 44 anos... "Antes, mais jovem tinha preguiça em deitar-me, agora tinha preguiça em permanecer ativo e só pensava em adormecer"... Os médicos são os doentes mais piegas.
       Com o progredir da doença e dos tratamentos, fica cada vez mais dependente, mais exposto aos outros. Agora está do outro lado. Não é médico, é o doente, com neessidade de atenção, de cuidado, de precauções variadas. Mas insiste com a vida. Não deixa de viver a família, com a mulher e os filhos, e de fazer viagens. Naquele que ele define como "o ano da minha morte", não deixa de ir numa viagem a Roma, embora seja o Porto, a sua cidade, e a família, os espaços onde se sente feliz.
       Perpassa muito sofrimento, certamente. A linha condutora, porém, é de grandeza corajosa, procurando viver bem, fazer as coisas mais normais como ir à casa de banho, apreciar pequenas vitórias, enfrentar os medos, os próprios mas sobretudo os da família. Custa mais ainda o sofrimento que a família possa vir a ter. Tem pouco tempo de vida. Mas quer esgotar as hipóteses que lhe são colocadas para minorar a dor ou a possibilidade de cura, calculando o preço/benefício. Sobrevém uma grande fé em Deus. Há um momento em que a normalidade parece ser aceitar a própria morte como inevitável, para não sofrer e não fazer sofrer os outros. É um testemunho muito lúcido sobre a vida, o amor, a família, a introspecção (o Porto e a família), a beleza, a alegria e a santidade, o trabalho e os amigos. Pedindo emprestado as palavras a Manuel Forjaz, diria que o cancro o matará mas não matará a sua a vida, relacionando-se com os amigos, com a família, com o mundo, com Deus. Enquanto houver tempo, há que viver o melhor possível, procurando viver, com as limitações da doença, a normalidade. Estuda com afinco os tratamentos. Às tantas dão-o como curado, que é sol de pouca dura... Novos tratamentos... transplante da medula óssea... debates acesos... perante 5% de hipótese, valerá a pena submeter-se a novo tratamento? Em Paris, ou em Portugal... sempre o Porto.

Da dedicatória do livro:
"Diverte-me a vida, aprecio a vida com intensidade todos os dias. Todo o tipo de vida: vegetal, animal, humana, espiritual..., a criação!
Agradeço aos que me ajudaram no aprofundamento deste sentimento que me arrebata.
Agradeço a dedico estas considerações em particular à minha mulher e aos meus filhos, à família que me faz viver".

Frases avulso:
"Como custa o silêncio! O silêncio da aceitação e obediência, o silêncio para me encher dos outros e me encher de nada de mim!" (p 58).

"As batalhas do meu temperamento desigual oscilavam assim dentro de uma grande amplitude, entre o fantástico e o péssimo, entre a realidade e o sonho, entre a alegria e a tristeza, entre a amizade e o isolamento, entre a glória e o arrependimento" (p 69)

Sobre Mafalda, a mulher: "Eu sofria por ver a dor dela e ela sofria por ver que sobre a minha dor eu tinha a dor pela dor dela. Cada um de nós como desaparecia na dor do outro" (p 82).

"O mês de janeiro chegou. Entrei no ano da minha morte. Era assim que eu interpretava a minha vocação" (p 100).

"Admirava cada vez mais a criação. Quanto mais sentia que nada do que existia era meu, que as minhas coisas e o meu corpo estavam hipotecados, mais gosto tinha pela vida e pelas coisas, pelas coisa em si, não porque fossem minhas... Eu não tenho nada, mas nada, nada meu! E que importa" (p 101).

"Sempre o tempo, sempre o espaço sem tempo, sempre o espírito sem a morada do tempo, sempre a qualidade sem medida... O homem sem tempo não pode ser homem! O tempo parece a alma do homem. Espaço e tempo, corpo e alma, dor e liberdade, obediência e vontade, ato e desejo, diversidade e unidade, dilemas longos e irreais como essas horas sem ritmo" (p. 125).

"É preciso amar inteiramente sem contrapartidas. Amar é querer estar sempre vivo para morrer. É preciso amar sem ver, sem possuir, viver com o estranho e o doloroso instrumento da fé, não a minha mas a que Deus me oferece" (p 196)

"Não poderei transportar uma árvore para o mar e plantá-la.mas poderei ver Deus face a face, poderei plantar-me na intimidade divina. Deus roçou o universo do querer humano. Deus procurou na pequenez do homem a grandeza divina. Deus quis-se na vontade do homem" (p 290).

sábado, 22 de março de 2014

Domingo III da Quaresma - ano A - 23 de março de 2014

       1 – «Todo aquele que bebe desta água voltará a ter sede. Mas aquele que beber da água que Eu lhe der nunca mais terá sede: a água que Eu lhe der tornar-se-á nele uma nascente que jorra para a vida eterna». «Senhor, – suplicou a mulher – dá-me dessa água, para que eu não sinta mais sede e não tenha de vir aqui buscá-la».
       O terceiro domingo da Quaresma traz-nos o encontro de Jesus com a SAMARITANA, episódio significativo e luminoso para todos os que se deixam encontrar por Jesus e, por sua vez, se querem aproximar dos outros para lhes levar o Evangelho. É um episódio verdadeiramente assertivo, pedagógico, de diálogo, de respeito, de consideração pelo outro, sem ferir a liberdade alheia, propondo uma perspetiva nova sobre a vida, alargando horizontes, sem impor, propondo uma escolha.
       É preciso ter sede, para aceitarmos beber e saborearmos o que bebemos. Veja-se a dificuldade quando bebemos por necessidade não tendo sede! Existe tanta coisa que nos ocupa e preocupa, estamos assoberbados de coisas para fazer e para conseguir. Voltas e mais voltas e às tantas não precisamos de Deus, temos outras prioridades; às tantas dispensamos os amigos, a festa, o encontro, o convívio, precisamos de todo o tempo para trabalhar, ganhar dinheiro, ter uma vida melhor, mas não conseguimos disponibilizar tempo para estar em família ou para participar em atividades lúdicas, culturais, religiosas, em compromissos sociais e solidários. Não temos tempo. Um dia teremos todo o tempo do mundo! Ainda iremos a tempo?
        2 – Jesus encontra aquela mulher, samaritana e, por conseguinte, estranha, estrangeira, inimiga, por questões históricas, por preconceitos religiosos. Está ocupada. Os seus dias não têm sido fáceis. A sua vida afetiva é uma tremenda trapalhada, já vai no sexto marido, vive suspensa, insatisfeita, quer-se manter jovem mas parece que a vida lhe escapa. Ocupa-se para não questionar a vida!
       Jesus chega de mansinho. Mete conversa. Sem preconceitos. Não quer saber se é inimiga dos judeus. Ela é pessoa. Não quer saber da vida que ela leva. Não começa com tiradas moralizantes. Pede-lhe água. Forma simples de lhe tocar na alma, pois logo ela se sente respeitada, prestável e útil.
       A jornada vai longa, Jesus chega ali esgotado, por volta do meio-dia, quando faz mais calor. Os discípulos foram à cidade buscar alimento. Ele fica a descansar.
       «Dá-Me de beber» – diz Jesus à Samaritana, que logo suspeita do pedido, ficando admirada e sublinhando estranheza com o facto de judeus e samaritanos andarem de candeias às avessas. Jesus avança um pouco mais: «Se conhecesses o dom de Deus e quem é Aquele que te diz: ‘Dá-Me de beber’, tu é que Lhe pedirias e Ele te daria água viva».
       Num tom carregado de ironia, a mulher questiona Jesus: «Senhor, Tu nem sequer tens um balde, e o poço é fundo: donde Te vem a água viva? Serás Tu maior do que o nosso pai Jacob, que nos deu este poço, do qual ele mesmo bebeu, com os seus filhos e os seus rebanhos?».
       Ela continua a falar da água do poço, Jesus fala da Água que vem do Céu, da eternidade, e que germina bem fundo, no mais íntimo de cada um de nós. Jesus abre um pouco mais o véu, falando-lhe do que ela não lhe disse, da sua vida passada e atual, não para a condenar, mas para a provocar, para a despertar, para que ela escute melhor e preste atenção a quem chega, pois poderá vir do Céu.
        3 – "Eu sou a porta. Se alguém entrar por mim estará salvo; há-de entrar e sair e achará pastagem" (Jo 10, 7-10). Jesus não se impõe, a Sua presença é segura, mas cabe-nos deixar que Ele entre na nossa vida, ou que queiramos por Ele aceder aos bens que vêm de Deus. No diálogo com a samaritana, Jesus respeita o seu crescimento espiritual, partindo de elementos neutros, a água, para a sua vida concreta, projetando uma abertura para Deus. Poderá ser Ele o Messias esperado?!
       Jesus adentra-se na sua vida, dizendo-lhe, e a nós também, coisas muito importantes, nas palavras proferidas e na postura assumida:
  • Não importa se viemos de perto ou de longe, qual a terra “emprestada” para viver, a nacionalidade, a condição moral e/ou religiosa, se somos homens ou mulheres, se temos muitas ou poucas posses, ou o ponto em que nos encontramos na nossa relação com Deus;
  • O que vale mesmo, para Jesus, é o que podemos ser, os dias que temos pela frente, o que decidimos HOJE para a nossa vida, ainda que o passado nos ajude a um compromisso mais libertador;
  • A conversão é interior, é uma opção livre. A nossa relação com Deus resolve-se, antes de mais, num diálogo íntimo com Ele. "Os verdadeiros adoradores hão de adorar o Pai em espírito e verdade, pois são esses os adoradores que o Pai deseja. Deus é espírito e os seus adoradores devem adorá-l’O em espírito e verdade". Os espaços e os tempos podem ajudar a encontrar com Deus. E também as pessoas e, por maioria de razão, a comunidade crente, mas a decisão é minha, é tua, é de cada um;
  • A descoberta de Deus e do Seu amor por nós gera alegria, júbilo, que por sua vez provoca e exige o anúncio do Evangelho. A alegria tende a transbordar. Ninguém faz festa sozinho. Só o que se partilha, também a vida, é realmente nosso. "A mulher deixou a bilha, correu à cidade e falou a todos: «Vinde ver um homem que me disse tudo o que eu fiz. Não será Ele o Messias?». Eles saíram da cidade e vieram ter com Jesus";
  • "Nem só de pão vive o homem, mas de toda a palavra que sai da boca de Deus" (Mt 4, 1-11). Eis o verdadeiro alimento para Jesus: «O meu alimento é fazer a vontade d’Aquele que Me enviou e realizar a sua obra». Os discípulos tinham ido à cidade buscar alimentos e quando chegam junto de Jesus verificam que Ele está satisfeito, recobrou energias. Alguém Lhe terá dado de comer?
  • A autenticidade tem consequências duradouras e gera discípulos. Os samaritanos deixam-se surpreender pelas palavras daquela mulher, mas é no encontro com Jesus que a verdadeira transformação acontece: «Já não é por causa das tuas palavras que acreditamos. Nós próprios ouvimos e sabemos que Ele é realmente o Salvador do mundo».
       4 – Descendo à nossa vida, quantas vezes nos encontramos à beira do poço? Que água sacia a nossa sede? Que buscamos? O que nos faz verdadeiramente felizes? Ainda procuramos algo de mais para a nossa existência?
       Na primeira leitura, encontramos o povo atormentado pela sede a protestar contra Moisés, contra Deus. O texto sublinha, por um lado, o cansaço de Moisés, tendo consciência que tudo fez em prol do povo, e, por outro, a paciência amorosa de Deus, ordenando a Moisés que se coloque à frente do povo, e caminhe, para que o povo siga adiante, dizendo-lhe que continua com ele e com todo o povo. É possível encontrar água, ainda que no meio do deserto. É preciso procurar, caminhar, agir. Ficar parado ou a olhar para as estrelas é que não adiantará de muito. Também aqui é Deus que sacia a sede e dá sentido e razões para a caminhada do povo. «O Senhor está ou não no meio de nós?». 
       Esta questão coloca-nos diante de Deus e dos irmãos, sobretudo daqueles que têm fome e sede, daqueles que vivem na miséria material. Como relembra o Papa, na Mensagem para a Quaresma, os cristãos devem fazer tudo o que está ao seu alcance para erradicar a pobreza material, Moisés fez a parte dele. Qualquer compromisso cristão não pode fazer-se esquecendo os necessitados, de pão e de sentido para a vida.

       5 – É preciso encarnar na vida e na história. A fé não vive nas nuvens, não se alimenta (somente) de boas intenções, alimenta-se da oração, da palavra de Deus, da celebração em comunidade, alimenta-se (obrigatoriamente) de gestos concretos na ajuda ao vizinho. Não se prega a estômagos vazios. Somos corresponsáveis pela miséria que se acentua no mundo. Ainda que não possamos resolver todos os problemas do mundo, em nome disso, não queiramos passar ao lado dos problemas que estão ao nosso alcance tratar. Nem só de pão vive o homem, mas também vive de pão. “A fome de pão deve desaparecer, mas a fome de Deus permanecerá” (Papa João Paulo II).
       Diz-nos o apóstolo São Paulo que estamos justificados em Cristo Jesus, por Ele «temos acesso, na fé, a esta graça em que permanecemos e nos gloriamos, apoiados na esperança da glória de Deus. Ora, a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado».
       A fé que ilumina a nossa vida parte da Encarnação de Deus que em Jesus Cristo Se nos entrega totalmente, e pelo mistério da Sua morte e Ressurreição introduz-nos na eternidade, onde Ele será tudo em todos e nós seremos todos irmãos. Porquanto, como Ele, procuremos encarnar a nossa vida, pelo amor de Deus que nos habita, no HOJE que passa e nas PESSOAS que Deus coloca ao nosso cuidado.

Textos para a Eucaristia (ano A): Ex 17, 3-7; Sl 94 (95); Rom 5, 1-2. 5-8; Jo 4, 5-42.