sábado, 29 de agosto de 2015

XXII Domingo do Tempo Comum - ano B - 30 de agosto

       1 – «Escutai-Me e procurai compreender. Não há nada fora do homem que ao entrar nele o possa tornar impuro. O que sai do homem é que o torna impuro; porque do interior do homem é que saem as más intenções: imoralidades, roubos, assassínios, adultérios, cobiças, injustiças, fraudes, devassidão, inveja, difamação, orgulho, insensatez. Todos estes vícios saem do interior do homem e são eles que o tornam impuro».
       Jesus é perentório: não são as circunstâncias que nos circundam que moralizam as nossas ações, mas o nosso interior, as nossas escolhas. É célebre a expressão de Ortega Y Gasset: somos nós e as nossas circunstâncias. Verdade seja dita que tudo à nossa volta nos influencia, positiva e/ou negativamente. A nossa disposição altera-se se está sol ou chuva., se dormimos bem ou mal, se alguém nos chateou momentos antes, se o pequeno-almoço não nos caiu bem. Uma infinidade de circunstâncias pode alterar o nosso humor e fazer precipitar alguma atitude ou palavra. E ninguém se livra das circunstâncias.
       Contudo, as circunstâncias exteriores não fazem o carácter de uma pessoa. Somos mais que as nossas circunstâncias. Por outro lado, as nossas limitações colocam-nos em linha com as possibilidades de errar e/ou pecar. Por outro e como seres racionais, somos responsáveis por controlar/humanizar o que dizemos e o que fazemos. Um exemplo caricato: algumas pessoas bebem uns copos ou uns shots para depois dizerem "umas verdades" ou fazerem "umas maldades". Têm desculpa porque beberam?! Que não bebam!
       2 – A questão levantada por alguns fariseus e alguns escribas (doutores da Lei) não tem qualquer conotação moral, pelo menos para nós. À primeira vista não passa de uma questão de higiene. Lavar as mãos antes de comer é uma recomendação para todos. Os discípulos de Jesus devem ser exímios em tudo o que os torne mais saudáveis e mais humanos. 
       Para os judeus trata-se de uma tradição e de uma prática religiosa. Ao longo do tempo, os 10 mandamentos deram lugar a uma "catrefada" de preceitos. Quase tudo é revestido de preceito religioso. As leis habitualmente tem uma punição associada. No judaísmo as leis tem uma leitura religiosa, como garantia para ser cumpridas.
       “Os fariseus e os judeus em geral não comem sem ter lavado cuidadosamente as mãos, conforme a tradição dos antigos. Ao voltarem da praça pública, não comem sem antes se terem lavado. E seguem muitos outros costumes a que se prenderam por tradição, como lavar os copos, os jarros e as vasilhas de cobre".
       As questões legais sobre a pureza cultual escraviza as pessoas. As mulheres eram as mais sacrificadas, pois todos os meses tinham dias em que eram consideradas impuras e que não podiam conviver socialmente e muito menos aproximar-se do Templo. Após o parto, a mulher tinha que ir ao Templo para se purificar. A sua impureza cultural estende-se a todos os que com ela convivem diretamente. Faz impressão hoje avaliar assim uma tradição. Não nos passa pela cabeça que um acontecimento "natural" possa excluir, ainda que momentaneamente, as pessoas do convívio social e muito menos da prática religiosa.
       3 – Lavar ou não lavar as mãos antes das refeições?! É uma regra simples de higiene e de saúde. Os discípulos comem sem lavar as mãos! Quando muito poderia provocar algum retraimento ou asco daqueles que estavam à mesa com eles.
       Percebe-se bem que foi um pretexto, mais um, para alguns fariseus e escribas insinuarem acerca da conduta de Jesus e dos seus discípulos. Mesmo que fosse apenas uma questão higiénica, ao dizerem-Lhe que os discípulos não tinham esse cuidado, estariam a dizer-Lhe que eram uns foras-da-lei, uns maltrapilhos desleixados, que não faziam esforço para se integrarem na sociedade. E se são assim tão descuidados e não convivem bem em sociedade, como se pode esperar alguma coisa do Seu Mestre, que vê e nada diz, nada faz?
       Se pensarmos que só no séculos XIX é que alguns médicos começaram a lavar e a recomendar lavar as mãos por ocasião dos partos, dá para perceber como os judeus, também nesta questão, estavam muito à frente, sendo cuidadosos com a saúde.
       Acrescente-se outra nota de reflexão: ao entrarmos nas nossas Igrejas fazemos a ablução com a água benta. Partimos do dia-a-dia para evocar a nossa ligação à Deus, reconhecendo a nossa indigência e acolhendo a misericórdia de Deus. Também os judeus como os muçulmanos têm alguns gestos que acentuam o limite que os faz entrar num espaço sagrado. As abluções são comuns a diferentes religiões, antes de entrar no templo ou de ler os Escritos sagrados.
       4 – «Porque não seguem os teus discípulos a tradição dos antigos, e comem sem lavar as mãos?» Jesus não se faz rogado e diz-lhes: «Bem profetizou Isaías a respeito de vós, hipócritas, como está escrito: ‘Este povo honra-Me com os lábios, mas o seu coração está longe de Mim. É vão o culto que Me prestam, e as doutrinas que ensinam não passam de preceitos humanos’. Vós deixais de lado o mandamento de Deus, para vos prenderdes à tradição dos homens».
       Em diversas ocasiões, Jesus chamará à atenção para zelos que não convertem, preceitos que não humanizam, leis que não aproximam e que já perderam o sentido. Quantas vezes nos agarramos a tradições anquilosadas? Sempre foi assim, assim será sempre! E o porquê desta ou daquela tradição? Seja na Igreja ou na sociedade, um dos critérios para validar uma tradição é a bondade da mesma, e se aproxima pessoas e as humaniza.
       Na parábola do Bom Samaritano (cf. Lc 10, 25-37), Jesus coloca em causa a pureza cultual que esquece a caridade. O sacerdote e o levita que veem aquele homem meio-morto estendido na estrada e não o ajudam porque ficavam impuros ao tocarem-lhe. Para eles o mais importante era a pureza cultual, mesmo abandonando uma pessoa de carne e osso, lugar-tenente de Deus.
       5 – A lei tem a preocupação de regular comportamentos, protegendo as pessoas da lei do mais forte. A perspetiva será sempre proteger os mais frágeis.
       Moisés comunica ao Povo os preceitos de Deus, para que o povo viva como povo: «Agora escuta, Israel, as leis e os preceitos que vos dou a conhecer e ponde-os em prática, para que vivais e entreis na posse da terra que vos dá o Senhor, Deus de vossos pais. Não acrescentareis nada ao que vos ordeno, nem suprimireis coisa alguma... eles serão a vossa sabedoria e a vossa prudência aos olhos dos povos».
       A Lei tem um rosto e um fundamento. Moisés relembra que a Lei é sobretudo a presença próxima e amistosa de Deus: «Qual é, na verdade, a grande nação que tem a divindade tão perto de si como está perto de nós o Senhor, nosso Deus, sempre que O invocamos? E qual é a grande nação que tem mandamentos e decretos tão justos como esta lei que hoje vos apresento?».
       A justiça dos preceitos assenta precisamente na proximidade de Deus.

       6 – A segunda leitura, de São Tiago, que ora iniciamos, vai mostrar-nos com clareza a plenitude da Lei, o amor concretizado em obras, no compromisso com os mais desprotegidos. A fundamentação é a aventada já anteriormente: Deus.
       Diz-nos o apóstolo: "Toda a boa dádiva e todo o dom perfeito vêm do alto, descem do Pai das luzes… Foi Ele que nos gerou pela palavra da verdade… Sede cumpridores da palavra e não apenas ouvintes… A religião pura e sem mancha, aos olhos de Deus, nosso Pai, consiste em visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações e conservar-se limpo do contágio do mundo".
       É Deus que nos gera pela palavra da verdade. Mais importante que conhecer a palavra, em nós plantada, é praticá-la. São Tiago dá exemplos concretos: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tripulações não se deixando arrastar pela corrente, qual "maria vai com as outras". Naquele tempo, as viúvas e os órfãos constituíam o grupo mais frágil, mais exposto, mais desfavorecido. Faziam parte das periferias existenciais com as quais os cristãos têm de estar comprometidos. 

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (B):
Deut 4, 1-2. 6-8; Sl 14 (15); Tg 1, 17-18. 21b-22. 27; Mc 7, 1-8. 14-15. 21-23.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Isidro LAMELAS: Santo Agostinho - A Alegria da Palavra

ISIDRO PEREIRA LAMELAS, ofm, (2012). Santo Agostinho, A Alegria da Palavra. Gaudio ubi audio. Coimbra: Tenacitas. 192 páginas.
       Na primeira Exortação Apostólica, Evangelii Gaudium (A Alegria do Evangelho), o Papa Francisco dedica algumas páginas incisivas à homilia, como uma ferramenta válida para o anúncio do Evangelho, a que sacerdotes e bispos devem dar especial atenção, preparando bem, com uma leitura atenta e demorada do Evangelho, uma e outra vez, pois só na medida em que a Palavra de Deus diga algo e seja significativa para quem A anuncia poderá ser luminosa para quem A escuta. Ainda que o Espírito Santo inspire uns e outros. A homilia há de partir de Jesus e fazer voltar a Jesus, em dinâmica de desafio, de conversão. A homilia visa sempre comunicar Jesus Cristo, e não o pregador. Procura ser acessível e envolvendo os que escutam.
       Neste livro o Pe. Isidro Lamelas apresenta-nos um pregador exímio: SANTO AGOSTINHO. Outro tempo, uma cultura diferente, um ambiente específico, mas com muitas notas úteis para perceber bem o papel da homilia nas comunidades eclesiais, com algumas constantes que se mantiveram ao longo dos tempos.
       O Pe. Isidro Lamelas, OFM (Ordem dos Frades Menores) é natural de Penude, Lamego. Minha terra natal. Essa foi uma motivação inicial e acrescida para ler esta obra. Mas bastaram as primeiras páginas para perceber que valeu a pena procurar este título e reservar-lhe atenção, pela densidade da exposição, pelo conhecimento e investigação do autor, mas ao mesmo tempo numa escrita muito acessível e de fácil leitura. Por outro lado, é um instrumento valioso para enquadrar a homilia, a partir de Santo Agostinho, figura ímpar do cristianismo.
       Santo Agostinho é reconhecidamente uma das mentes mais brilhantes do cristianismo, sendo uma referência para os teólogos em diferentes campos da teologia mas também da filosofia, e com frases que se multiplicam na Internet. Sobre os Sacramentos, sobre a Teologia da Graça, sobre a Igreja. Uma das obras mais lidas do autor: Confissões. Testemunho da sua fé, o caminho da conversão a Jesus Cristo, a busca e o encontro com o Mestre dos Mestres.
       Menos conhecidos são os seus Sermões (populares). Ultimamente têm sido descobertos alguns e têm ganhado relevância nos meios académicos.
       O autor, Isidro Lamelas, dedica os primeiros capítulos a refletir sobre os aspetos mais importantes das homilias de Santo Agostinho, com o enquadramento histórico e mostrando como a referidas homilias apresentam um estilo específico de oralidade, pelo que seria mais fácil ouvir do que ler. A origem e o propósito: homilias dirigidas às comunidades crentes. Salienta-se o facto do pregador contextualizar as suas intervenções, tendo em conta as pessoas que tem à sua frente, partindo de uma leitura previamente escolhida, ou não, com um tema preparado, mas por vezes alterando a temática perante a necessidade de falar de outro assunto, com grande interação com o povo, em que o próprio provoca reações ou as expressa, aplausos, cansaço, fadiga, das pessoas ou dele próprio, ocasiões festivas, ouvintes que estão a entender ou nem por isso, sendo preciso explicar melhor ou deixar para outro dia o aprofundamento do tema.
       Uma nota sempre sublinhada é o facto do pregador hiponense partir sempre da Palavra de Deus, e a ela recorrer frequentemente. Usa uma linguagem muito viva, na procura de explicar  melhor possível. O mais importante é que a homilia esteja ao serviço da palavra, ainda que reconheça que a eloquência poderá ajudar a uma melhor compressão da mensagem. Porém, o mais importante é sempre o conteúdo, a Palavra de Deus.
       Numa segunda parte da obra, o Pe. Isidro apresenta algumas homilias, ou parte delas, sobretudo referidas à temática social. No momento de crise que a sociedade atravessa, as palavras de Santo Agostinho continuam válidas e incisivas.
       Ao ler este livro fiquei convencido da mestria do autor e da sua sugestão: as homilias de Santo Agostinho, que se leem com grande agrado, podendo a ajudar outros a preparar melhor as homilias, e a todos ajudar a viver/acolher melhor a Palavra de Deus.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (1)

Queridos irmãos e irmãs!
       Depois das grandes festas de Natal, gostaria de voltar às meditações sobre os Padres da Igreja e falar hoje do maior Padre da Igreja latina, Santo Agostinho: homem de paixão e de fé, de grande inteligência e incansável solicitude pastoral, este grande santo e doutor da Igreja é muito conhecido, pelo menos de fama, também por quem ignora o cristianismo ou não tem familiaridade com ele, porque deixou uma marca muito profunda na vida cultural do Ocidente e de todo o mundo. Pelo seu singular relevo, Santo Agostinho teve uma influência vastíssima, e poder-se-ia afirmar, por um lado, que todas as estradas da literatura latina cristã levam a Hipona (hoje Annaba, à beira-mar da Argélia), o lugar onde era Bispo e, por outro, que desta cidade da África romana, da qual Agostinho foi Bispo de 395 até à morte em 430, se ramificam muitas outras estradas do cristianismo sucessivo e da própria cultura ocidental.
       Raramente uma civilização encontrou um espírito tão grande, que soubesse acolher os seus valores e exaltar a sua intrínseca riqueza, inventando ideias e formas das quais se alimentariam as gerações vindouras, como ressaltou também Paulo VI: "Pode-se dizer que todo o pensamento da antiguidade conflui na sua obra e dela derivam correntes de pensamento que permeiam toda a tradição doutrinal dos séculos sucessivos" (AAS 62, 1970, p. 426). Além disso, Agostinho é o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras. O seu biógrafo Possídio diz: parecia impossível que um homem pudesse escrever tantas coisas durante a vida. Falaremos destas diversas obras num próximo encontro. Hoje a nossa atenção concentra-se sobre a sua vida, que se reconstrói bem pelos escritos, e em particular pelas Confessiones, a extraordinária autobiografia espiritual, escrita em louvor a Deus, que é a sua obra mais famosa. E são precisamente as Confessiones agostinianas, com a sua atenção à interioridade e à psicologia, que constituem um modelo único na literatura ocidental, e não só, também não religiosa, até à modernidade. Esta atenção à vida espiritual, ao mistério do eu, ao mistério do Deus que se esconde no eu, é uma coisa extraordinária sem precedentes e permanece para sempre, por assim dizer, um "vértice" espiritual.
        Mas, falando da sua vida, Agostinho nasceu em Tagaste na Província de Numídia, na África romana a 13 de Novembro de 354, filho de Patrício, um pagão que depois se tornou catecúmeno, e de Mónica, cristã fervorosa. Esta mulher apaixonada, venerada como santa, exerceu sobre o filho uma grandíssima influência e educou-o na fé cristã. Agostinho recebeu também o sal, como sinal de acolhimento no catecumenato. E permaneceu sempre fascinado pela figura de Jesus Cristo; aliás, ele diz que amou sempre Jesus, mas que se afastou cada vez mais da fé eclesial, da prática eclesial, como acontece hoje com muitos jovens.

       Agostinho tinha também um irmão, Navígio, e uma irmã, da qual não sabemos o nome e que, tendo ficado viúva, chefiou depois um mosteiro feminino. O jovem, de inteligência aguda, recebeu uma boa educação, mesmo se nem sempre foi um estudante exemplar. Contudo ele estudou bem a gramática, primeiro na sua cidade natal, depois em Madaura, e a partir de 370 rectórica em Cartago, capital da África romana: dominava perfeitamente a língua latina, mas não conseguiu dominar do mesmo modo o grego nem aprendeu o púnico, falado pelos seus conterrâneos. Precisamente em Cartago Agostinho leu pela primeira vez o Hortensius, um escrito de Cícero que depois se perdeu, o qual está na base do seu caminho rumo à conversão. De facto, o texto de Cícero despertou nele o amor pela sabedoria, como escreverá, já Bispo, nas Confessiones: "Aquele livro mudou verdadeiramente o meu modo de sentir", a ponto que "de repente perdeu valor qualquer esperança vã e desejava com um incrível fervor do coração a imortalidade da sabedoria" (III, 4, 7).
       Mas estando convencido de que sem Jesus não se pode dizer que se encontrou efectivamente a verdade, e dado que neste livro apaixonante lhe faltava aquele nome, logo após tê-lo lido começou a ler a Escritura, a Bíblia. Mas ficou desiludido. Não só porque o estilo latino da tradução da Sagrada Escritura era insuficiente, mas também porque o próprio conteúdo lhe pareceu insatisfatório. Nas narrações da Escritura sobre guerras e outras vicissitudes humanas não encontrava a altura da filosofia, o esplendor de busca da verdade que lhe é próprio. Contudo, não queria viver sem Deus e assim procurava uma religião que correspondesse ao seu desejo de verdade e também ao seu desejo de se aproximar de Jesus. Caiu assim na rede dos maniqueus, que se apresentavam como cristãos e prometiam uma religião totalmente racional. Afirmavam que o mundo está dividido em dois princípios: o bem e o mal. E assim se explicaria toda a complexidade da história humana. Agostinho apreciava também a moral dualista, porque implicava uma moral muito alta para os eleitos: e para quem, como ele, a ela aderia, era possível uma vida muito mais adequada à situação do tempo, sobretudo para um homem jovem. Portanto, tornou-se maniqueu, convencido naquele momento de ter encontrado a síntese entre racionalidade, busca da verdade e amor a Jesus Cristo. E teve também uma vantagem concreta para a sua vida: de facto, a adesão aos maniqueus abria perspectivas fáceis para fazer carreira. Aderir àquela religião que contava muitas personalidades influentes permitia-lhe prosseguir a relação estabelecida com uma mulher e continuar a sua carreira. Desta mulher teve um filho, Adeodato, por ele muito querido, muito inteligente, que estará depois presente na preparação para o baptismo junto do lago de Como, participando naqueles "Diálogos" que Santo Agostinho nos transmitiu. Infelizmente o jovem faleceu prematuramente. Professor de gramática aos vinte anos na sua cidade natal, regressou cedo a Cartago, onde foi um brilhante e celebrado mestre de rectórica. Todavia, com o tempo, Agostinho começou a afastar-se da fé dos maniqueus, que o desiludiram precisamente sob o ponto de vista intelectual porque não esclareceram as suas dúvidas, e transferiu-se para Roma, e depois para Milão, onde na época residia a corte imperial e onde obtivera um lugar de prestígio graças ao interesse e às recomendações do prefeito de Roma, o pagão Símaco, hostil ao Bispo de Milão, Santo Ambrósio.

       Em Milão Agostinho adquiriu o costume de ouvir inicialmente para enriquecer a sua bagagem rectórica as lindíssimas pregações do Bispo Ambrósio, que tinha sido representante do imperador para a Itália setentrional, e pela palavra do grande prelado milanês o rectórico africano sentiu-se fascinado; e não só pela sua rectórica, sobretudo o conteúdo atingiu cada vez mais o seu coração. O grande problema do Antigo Testamento, da falta de beleza rectórica, de elevação filosófica resolveu-se, nas pregações de santo Ambrósio, graças à interpretação tipológica do Antigo Testamento: Agostinho compreendeu que todo o Antigo Testamento é um caminho rumo a Jesus Cristo. Encontrou assim a chave para compreender a beleza, a profundidade também filosófica do Antigo Testamento e percebeu toda a unidade do mistério de Cristo na história e também a síntese entre filosofia, racionalidade e fé no Logos, em Cristo Verbo eterno que se fez carne.
        Em breve tempo Agostinho deu-se conta de que a literatura alegórica da Escritura e a filosofia neoplatónica praticadas pelo Bispo de Milão lhe permitiam resolver as dificuldades intelectuais que, quando era jovem, na sua primeira abordagem aos textos bíblicos, lhe pareciam insuperáveis.

       À dos escritos dos filósofos Agostinho fez seguir-se a leitura renovada da Escritura e sobretudo das Cartas paulinas. A conversão ao cristianismo, a 15 de Agosto de 386, colocou-se no ápice de um longo e atormentado percurso interior, do qual falaremos noutra catequese, e o africano transferiu-se para o campo a norte de Milão, nas proximidades do lago de Como com a mãe Mónica, o filho Adeodato e um pequeno grupo de amigos a fim de se preparar para o baptismo. Assim, aos trinta e dois anos, Agostinho foi baptizado por Ambrósio a 24 de Abril de 387, durante a vigília pascal, na Catedral de Milão.

       Depois do baptismo, Agostinho decidiu regressar à África com os amigos, com a ideia de praticar uma vida comum, de tipo monástico, ao serviço de Deus. Mas em Óstia, à espera de partir, a mãe improvisamente adoeceu e pouco mais tarde faleceu, dilacerando o coração do filho. Regressando finalmente à pátria, o convertido estabeleceu-se em Hipona para ali fundar um mosteiro. Nesta cidade da beira-mar africana, apesar das suas resistências, foi ordenado presbítero em 391 e iniciou com alguns companheiros a vida monástica na qual pensava há tempos, dividindo os seus dias entre a oração, o estudo e a pregação. Ele desejava estar só ao serviço da verdade, não se sentia chamado à vida pastoral, mas depois compreendeu que a chamada de Deus era para ser pastor entre os outros, e oferecer assim o dom da verdade aos demais. Em Hipona, quatro anos mais tarde, em 395, foi consagrado Bispo. Continuando a aprofundar o estudo das Escrituras e dos textos da tradição cristã, Agostinho foi um Bispo exemplar no seu incansável compromisso pastoral: pregava várias vezes por semana aos seus fiéis, apoiava os pobres e os órfãos, cuidava da formação do clero e da organização de mosteiros femininos e masculinos. Em pouco tempo o antigo rectórico afirmou-se como um dos representantes mais importantes do cristianismo daquele tempo: muito activo no governo da sua diocese com notáveis influências também civis nos mais de 35 anos de episcopado, o Bispo de Hipona exerceu grande influência na guia da Igreja católica da África romana e mais em geral no cristianismo do seu tempo, enfrentando tendências religiosas e heresias tenazes e desagregadoras como o maniqueísmo, o donatismo e o pelagianismo, que punham em perigo a fé cristã no Deus único e rico em misericórdia.

       E a Deus se confiou Agostinho todos os dias, até ao extremo da sua vida: atingido por febre, quando havia três meses que Hipona estava assediada pelos vândalos invasores, o Bispo narra o amigo Possídio na Vita Augustini pediu para transcrever em letras grandes os salmos penitenciais "e fez pregar as folhas na parede, de modo que estando de cama durante a sua doença os podia ver e ler, e chorava ininterruptamente lágrimas quentes" (31, 2). Transcorreram assim os últimos dias da vida de Agostinho, que faleceu a 28 de Agosto de 430, quando ainda não tinha completado 76 anos. Dedicaremos os próximos encontros às suas obras, à sua mensagem e à sua vicissitude interior.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (2)

Queridos irmãos e irmãs!
       Hoje, como na passada quarta-feira, gostaria de falar do grande Bispo de Hipona, Santo Agostinho. Quatro anos antes de morrer, ele quis nomear o sucessor. Por isso, a 26 de Setembro de 426, reuniu o povo na Basílica da Paz, em Hipona, para apresentar aos fiéis aquele que tinha designado para tal tarefa. Disse: "Nesta vida somos todos mortais, mas o último dia desta vida é para cada indivíduo sempre incerto. Contudo, na infância espera-se chegar à adolescência; na adolescência à juventude; na juventude à idade adulta; na idade adulta à maturidade; na idade madura à velhice. Não se tem a certeza de a alcançar, mas espera-se. A velhice, ao contrário, não tem diante de si outro período no qual esperar; a sua própria duração é incerta... Eu por vontade de Deus cheguei a esta cidade no vigor da minha vida; mas agora a minha juventude passou e eu já sou velho" (Ep 213, 1). Nesta altura Agostinho pronunciou o nome do sucessor designado, o sacerdote Heráclito. A assembleia explodiu num aplauso de aprovação repetindo vinte e três vezes: "Deus seja louvado! Deus seja louvado!". Com outras aclamações os fiéis aprovaram, além disso, quanto Agostinho disse depois sobre os propósitos para o seu futuro: queria dedicar os anos que lhe restavam a um estudo mais intenso das Sagradas Escrituras (cf. Ep 213, 6).
       De facto, seguiram-se quatro anos de extraordinária actividade intelectual: realizou obras importantes, empreendeu outras não menos empenhativas, fez debates públicos com os hereges procurava sempre o diálogo interveio para promover a paz nas províncias africanas assediadas pelas tribos bárbaras do sul. Neste sentido escreveu ao conde Dário, que foi à África para resolver a discórdia entre o conde Bonifácio e a corte imperial, da qual se estavam a aproveitar as tribos dos Mauritanos pelas suas incursões: "O maior título de glória afirmava na carta é precisamente o de suprimir a guerra com as palavras, em vez de matar os homens com a espada, e procurar ou manter a paz com a paz e não com a guerra. Sem dúvida, também os que combatem, se são bons, procuram sem dúvida a paz, mas à custa do derramamento de sangue. Tu, ao contrário, foste enviado precisamente para impedir que se procure derramar o sangue de alguém" (Ep 229, 2). Infelizmente, a esperança de uma pacificação dos territórios africanos foi desiludida: em Maio de 429 os Vândalos, convidados para a África por vingança pelo próprio Bonifácio, passaram o estreito de Gibraltar e invadiram a Mauritânia. A invasão atingiu rapidamente as outras ricas províncias africanas. Em Maio ou em Junho de 430 "os destruidores do império romano", como Possídio qualifica aqueles bárbaros (Vita, 30, 1), estavam em volta de Hipona, que assediaram.
       Na cidade tinha procurado refúgio, o qual, tendo-se reconciliado demasiado tarde com a corte, procurava agora em vão impedir o caminho aos invasores. O biógrafo Possídio descreve o sofrimento de Agostinho: "As lágrimas eram, mais do que o habitual, o seu pão noite e dia e, tendo já chegado ao extremo da sua vida, mais que os outros arrastava à amargura e ao luto a sua velhice (Vida, 28, 6). E explica: "De facto, aquele homem de Deus via os massacres e as destruições das cidades; destruídas as casas no campo e os habitantes mortos pelos inimigos ou afugentados e desorientados; as igrejas privadas dos sacerdotes e dos ministros, as virgens sagradas e os religiosos dispersos por toda a parte; entre eles, outros mortos sob as torturas, outros assassinados pela espada, outros feitos prisioneiros, perdida a integridade da alma e do corpo e também a fé, reduzidos em dolorosa e longa escravidão pelos inimigos" (ibid., 28, 8).
       Mesmo idoso e cansado, Agostinho conquistou contudo sempre simpatias, confortando-se a si mesmo e aos outros com a oração e a meditação sobre os misteriosos desígnios da Providência. Falava, a este propósito, da "velhice do mundo" e verdadeiramente era velho esse mundo romano falava desta velhice como já tinha feito anos antes para confortar os prófugos provenientes da Itália, quando em 410 os Godos de Alarico tinham invadido a cidade de Roma. Na velhice, dizia, os doentes abundam: tosse, catarro, remela, ansiedade, esgotamento. Mas se o mundo envelhece, Cristo é perpetuamente jovem. E então o convite: "Não rejeitar rejuvenescer unido a Cristo, também no mundo velho. Ele diz-te: Não temas, a tua juventude renovar-se-á como a da águia" (cf. Serm. 81, 8). Por conseguinte, o cristão não deve desanimar mesmo em situações difíceis, mas empenhar-se por ajudar quem está em necessidade. É quanto o grande Doutor sugere respondendo ao Bispo de Tiabe, Honorato, que lhe tinha pedido se, sob as ameaças das invasões bárbaras, um Bispo, um sacerdote ou um homem qualquer de Igreja pudesse fugir para salvar a vida: "Quando o perigo é comum a todos, isto é, a Bispos, clérigos e leigos, os que têm necessidade dos outros não sejam abandonados por aqueles dos quais têm necessidade. Neste caso transfiram-se todos para lugares seguros; mas se alguns têm necessidade de permanecer, não sejam abandonados por aqueles que têm o dever de os assistir com o ministério sagrado, de modo que se salvem juntamente ou juntos suportem as calamidades que o Pai de família quiser que sofram" (Ep 228, 2). E concluía: "Esta é a prova suprema da caridade" (ibid., 3). Como não reconhecer, nestas palavras, a mensagem heróica que tantos sacerdotes, aol ongo dos séculos, acolheram e fizeram própria?
       Entretanto a cidade de Hipona resistia. A casa-mosteiro de Agostinho tinha aberto as suas portas para acolher os colegas no episcopado que pediam hospitalidade. Entre eles encontrava-se também Possídio, já seu discípulo, o qual pôde assim deixar-nos o testemunho directo daqueles últimos e dramáticos dias. "No terceiro mês daquela invasão narra ele caiu de cama com febre: era a sua última doença" (Vita, 29, 3). O santo idoso aproveitou daquele tempo finalmente livre para se dedicar com mais intensidade à oração. Costumava afirmar que ninguém, Bispo, religioso ou leigo, por mais irrepreensível que possa parecer o seu comportamento, pode encarar a morte com uma adequada penitência. Por isso ele repetia continuamente entre lágrimas os salmos penitenciais, que tantas vezes recitara com o povo (cf. ibid., 31, 2).

       Quanto mais se agravava a doença, mais o Bispo moribundo sentia necessidade de solidão e de oração: "Para não ser incomodado por ninguém no seu recolhimento, cerca de dez dias antes de sair do corpo implorou a nós presentes para não deixar entrar ninguém no seu quarto fora das horas em que os médicos iam visitá-lo ou quando lhe levavam as refeições. A sua vontade foi cumprida exactamente e durante todo aquele tempo ele dedicava-se à oração" (ibid., 31, 3). Cessou de viver a 28 de Agosto de 430: o seu grande coração tinha-se finalmente aplacado em Deus.

       "Para a deposição do seu corpo informa Possídio foi oferecido a Deus o sacrifício, ao qual nós assistimos, e depois foi sepultado" (Vita, 31, 5). O seu corpo, em data incerta, foi transferido para a Sardenha e dali, por volta de 725, para Pavia, na Basílica de São Pedro "in Ciel d'oro", onde repousa ainda hoje. O seu primeiro biógrafo tem sobre ele este juízo conclusivo: "Deixou à Igreja um clero muito numeroso, assim como mosteiros de homens e de mulheres cheios de pessoas dedicadas à continência sob a obediência dos seus superiores, juntamente com as bibliotecas que contêm livros e discursos seus e de outros santos, dos quais se conhece qual foi por graça de Deus o seu mérito e a sua grandeza na Igreja, e nos quais os fiéis sempre o encontram vivo" (Possídio, Vita, 31, 8). Trata-se de uma afirmação à qual nos podemos associar: nos seus escritos também nós o "encontramos vivo". Quando leio os escritos de Santo Agostinho não tenho a impressão que é um homem morto mais ou menos há mil e seiscentos anos, mas sinto-o como um homem de hoje: um amigo, um contemporâneo que me fala, que fala a nós com a sua fé vigorosa e actual. Em Santo Agostinho que nos fala, fala a mim nos seus escritos, vemos a actualidade permanente da sua fé; da fé que vem de Cristo, Verbo Eterno Encarnado, Filho de Deus e Filho do homem. E podemos ver que esta fé não é de ontem, mesmo tendo sido pregada ontem; é sempre de hoje, porque Cristo é realmente ontem, hoje e para sempre. Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Assim nos encoraja Santo Agostinho a confiar-nos a este Cristo sempre vivo e a encontrar assim o caminho da vida.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (3)

Queridos amigos
       Depois da Semana de oração pela unidade dos cristãos voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho. O meu querido Predecessor João Paulo II dedicou em 1986, isto é, no décimo sexto centenário da sua conversão, um longo e denso documento, a Carta apostólica Augustinum Hipponensem. O próprio Papa quis definir este texto "um agradecimento a Deus pelo dom feito à Igreja, e através dela à humanidade inteira, com aquela admirável conversão". Sobre o tema da conversão gostaria de voltar a reflectir numa próxima Audiência. É um tema fundamental não só para a sua vida pessoal, mas também para a nossa. No Evangelho de domingo passado o próprio Senhor resumiu a sua pregação com a palavra: "Convertei-vos". Seguindo o caminho de Santo Agostinho, poderíamos meditar sobre o que foi esta conversão: uma coisa definitiva, decisiva, mas a decisão fundamental deve desenvolver-se, deve realizar-se em toda a nossa vida.

       Hoje a catequese é dedicada, ao contrário, ao tema fé e razão, que é determinante, ou melhor, o tema determinante para a biografia de Santo Agostinho. Quando era criança tinha aprendido da sua mãe Mónica a fé católica. Mas quando era adolescente abandonou esta fé porque não via a sua racionalidade e não queria uma religião, que não fosse também para ele expressão da razão, isto é, da verdade. A sua sede de verdade era radical e levou-o portanto a afastar-se da fé católica. Mas a sua radicalidade era tal que ele não podia contentar-se com filosofias que não alcançassem a própria verdade, que não chegassem a Deus. E a um Deus que não fosse só uma última hipótese cosmológica, mas o verdadeiro Deus, o Deus que dá a vida e que entra na nossa própria vida. Assim todo o percurso intelectual e espiritual de Santo Agostinho constitui um modelo válido também hoje na relação entre fé e razão, tema não só para homens crentes mas para cada homem que procura a verdade, tema central para o equilíbrio e o destino de cada ser humano. Estas duas dimensões, fé e razão, não podem ser separadas nem contrapostas, mas devem antes estar sempre juntas. Como escreveu o próprio Agostinho, depois da sua conversão, fé e razão são "as duas forças que nos levam a conhecer" (Contra Academicos, III, 20, 43). A este propósito permanecem justamente célebres as duas fórmulas agostinianas (Sermones, 43, 9) que expressam esta síntese coerente entre fé e razão: crede ut intelligas ("crê para compreender") o crer abre o caminho para passar pela porta da verdade mas também, e inseparavelmente, intellige ut credas ("compreende para crer"), perscruta a verdade para poder encontrar Deus e crer.

       As duas afirmações de Agostinho exprimem com eficaz prontidão e com igual profundidade a síntese deste problema, na qual a Igreja católica vê expresso o próprio caminho. Historicamente esta síntese vai-se formando, ainda antes da vinda de Cristo, no encontro entre fé judaica e pensamento grego no judaísmo helénico. Sucessivamente na história esta síntese foi retomada e desenvolvida por muitos pensadores cristãos. A harmonia entre fé e razão significa sobretudo que Deus não está longe: não está longe da nossa razão e da nossa vida; está próximo de cada ser humano, perto do nosso coração e da nossa razão, se realmente nos pusermos a caminho.
        Precisamente esta proximidade de Deus ao homem foi sentida com extraordinária intensidade por Agostinho. A presença de Deus no homem é profunda e ao mesmo tempo misteriosa, mas pode ser reconhecida e descoberta no próprio íntimo: não saias afirma o convertido mas "volta para ti"; no homem interior habita a verdade; e se achares que a tua natureza é alterável, transcende-te a ti mesmo. Mas recorda-te, quando te transcendes a ti mesmo, transcendes uma alma que raciocina" (De vera religione, 39, 72). Precisamente como ele mesmo ressalta, com uma afirmação muito famosa, no início das Confessiones, autobiografia espiritual escrita para louvor de Deus: "Criastes-nos para Vós, e o nosso coração está inquieto, enquanto não descansa em Vós" (I, 1, 1).

       A distância de Deus equivale à distância de si mesmo: "De facto, tu reconhece Agostinho (Confessiones, III, 6, 11) dirigindo-se directamente a Deus estavas dentro de mim mais que o meu íntimo e acima da minha parte mais alta", interior intimo meo et superior summo meo; a ponto que acrescenta noutro trecho recordando o tempo que precedeu a conversão "tu estavas diante de mim; e eu, ao contrário, tinha-me afastado de mim mesmo, e não me reencontrava; e muito menos te encontrava a ti" (Confessiones, V, 2, 2). Precisamente porque Agostinho viveu em primeira pessoa este percurso intelectual e espiritual, soube transmiti-lo nas suas obras com tanta prontidão, profundidade e sabedoria, reconhecendo em dois outros célebres trechos das Confessiones (IV, 4, 9 e 14, 22) que o homem é "um grande enigma" (magna quaestio) e "um grande abismo" (grande profundum), enigma e abismo que só Cristo ilumina e salva. Isto é importante: um homem que está distante de Deus está também afastado de si mesmo, alienado de si próprio, e só pode reencontrar-se encontrando-se com Deus. Assim chega também a si, ao seu verdadeiro eu, à sua verdadeira identidade.
       O ser humano ressalta depois Agostinho no De civitate Dei (XII, 27) é social por natureza mas anti-social por vício, e é salvo por Cristo, único mediador entre Deus e a humanidade e "caminho universal da liberdade e da salvação", como repetiu o meu predecessor João Paulo II (Augustinum Hipponensem, 21): fora deste caminho, que nunca faltou ao género humano afirma ainda Santo Agostinho na mesma obra "ninguém jamais foi libertado, ninguém é libertado e ninguém será libertado" (De civitate Dei, X, 32, 2). Enquanto único mediador da salvação, Cristo é a cabeça da Igreja e a ela está misticamente unido a ponto que Agostinho pode afirmar: "Tornamo-nos Cristo. De facto, se ele é a cabeça, nós somos os seus membros, o homem total é Ele e nós" (In Iohannis evangelium tractatus, 21, 8).

       Povo de Deus e casa de Deus, a Igreja na visão agostiniana está portanto estreitamente relacionada com o conceito de Corpo de Cristo, fundada na releitura cristológica do Antigo Testamento e na vida sacramental centrada na Eucaristia, na qual o Senhor nos dá o seu Corpo e nos transforma em seu Corpo. Então, é fundamental que a Igreja, povo de Deus em sentido cristológico e não em sentido sociológico, esteja verdadeiramente inserida em Cristo, o qual afirma Agostinho numa lindíssima página "reza por nós, reza em nós, é rezado por nós; reza por nós como nosso sacerdote, reza em nós como nossa cabeça, é rezado por nós como nosso Deus: reconhecemos portanto nele a nossa voz e em nós a sua" (Enarrationes in Psalmos, 85, 1).

       Na conclusão da Carta apostólica Augustinum Hipponensem João Paulo II quis perguntar ao próprio Santo o que tem para dizer aos homens de hoje e responde antes de tudo com as palavras que Agostinho escreveu numa carta ditada pouco antes da sua conversão: "Parece-me que se deve reconduzir os homens à esperança de encontrar a verdade" (Epistulae, 1, 1); aquela verdade que é o próprio Cristo, Deus verdadeiro, ao qual é dirigida uma das orações mais bonitas e mais famosas das Confessiones (X, 27, 38): "Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Estáveis dentro de mim e eu estava fora, e aí Vos procurava; e disforme como era, lançava-me sobre estas coisas formosas que criastes. Estáveis comigo e eu não estava convosco. Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Mas Vós me chamastes, clamastes e rompestes a minha surdez. Brilhastes, resplandecestes e curastes a minha cegueira. Exalastes o vosso perfume: respirei-o e agora suspiro por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me, e comecei a desejar ardentemente a vossa paz".

       Eis que Agostinho encontrou Deus e durante toda a sua vida fez experiência dele a ponto que esta realidade que é antes de tudo encontro com uma Pessoa, Jesus mudou a sua vida, assim como muda a de quantos, mulheres e homens, em todos os tempos têm a graça de o encontrar. Rezemos para que o Senhor nos conceda esta graça e nos faça encontrar assim a sua paz.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (4)

Queridos irmãos e irmãs
       Depois da pausa dos exercícios espirituais da semana passada voltamos hoje à grande figura de Santo Agostinho, sobre o qual já falei repetidamente nas catequeses da quarta-feira. É o Padre da Igreja que deixou o maior número de obras, e hoje pretendo falar delas brevemente. Alguns dos escritos agostinianos são de importância fundamental, e não só para a história do cristianismo mas para a formação de toda a cultura ocidental: o exemplo mais claro são as Confessiones, sem dúvida um dos livros da antiguidade cristã ainda hoje muito lido. Como diversos Padres da Igreja dos primeiros séculos, mas em medida incomparavelmente mais ampla, também o Bispo de Hipona exerceu de facto uma influência alargada e persistente, como é demonstrado pela superabundante tradição manuscrita das suas obras, que deveras são numerosíssimas.

       Ele mesmo as passou em revista alguns anos antes de morrer nas Retractationes e pouco depois da sua morte elas foram cuidadosamente registradas no Indiculus ("elenco") acrescentado pelo amigo fiel Possídio à biografia de Santo Agostinho, Vita Augustini. O elenco das obras de Agostinho foi realizado com a intenção explícita de salvaguardar a sua memória enquanto a invasão vândala se expandia em toda a África romana e conta mil e trinta escritos enumerados pelo seu Autor, com outros "que não podem ser numerados, porque não os enumerou". Bispo de uma cidade próxima, Possídio ditava estas palavras precisamente a Hipona onde se tinha refugiado e assistira à morte do amigo e quase certamente se baseava no catálogo da biblioteca pessoal de Agostinho. Hoje, são mais de trezentas as cartas do Bispo de Hipona que sobreviveram e quase seiscentas as homilias, mas elas eram muitas mais, talvez até entre as três mil e as quatro mil, fruto de quarenta anos de pregações do antigo reitor que tinha decidido seguir Jesus e falar já não aos grandes da corte imperial, mas à simples população de Hipona.
        E ainda em anos recentes as descobertas de um grupo de cartas e de algumas homilias enriqueceram o nosso conhecimento deste grande Padre da Igreja. "Muitos livros, escreve Possídio, foram por ele compostos e publicados, muitas pregações foram feitas na igreja, transcritas e corrigidas, quer para contestar os diversos hereges quer para interpretar as sagradas Escrituras dos santos filhos da Igreja. Estas obras ressalta o Bispo amigo são tantas que dificilmente um estudioso tem a possibilidade de as ler e aprender a conhecê-las" (Vita Augustini, 18, 9).

       Entre a produção literária de Agostinho portanto mais de mil publicações subdivididas em escritos filosóficos, apologéticos, doutrinais, morais, monásticos, exegéticos, anti-hereges, além, precisamente, das obras excepcionais de grande alcance teológico e filosófico. Antes de tudo é preciso recordar as já mencionadas Confessiones, escritas em treze livros entre 397 e 400 para louvor de Deus. Elas são uma espécie de autobiografia na forma de um diálogo com Deus. Este género literário reflecte precisamente a vida de Santo Agostinho, que era uma vida não fechada em si, dispersa em tantas coisas, mas vivida substancialmente como diálogo com Deus e assim uma vida com os outros. Já o título Confessiones indica a especificidade desta autobiografia. Esta palavra confessiones no latim cristão desenvolvido pela tradição dos Salmos tem dois significados, que contudo se entrelaçam. Confessiones indica, em primeiro lugar, a confissão das próprias debilidades, da miséria dos pecados; mas, ao mesmo tempo, confessiones significa louvor a Deus, reconhecimento a Deus. Ver a própria miséria na luz de Deus torna-se louvor a Deus e agradecimento porque Deus nos ama e nos aceita, nos transforma e nos eleva para si mesmo. Sobre estas Confessiones, que tiveram grande êxito já durante a vida de Santo Agostinho, ele mesmo escreveu: "Elas exerceram sobre mim tal acção enquanto as escrevia e ainda a exercem quando as releio. Estas obras são do agrado de muitos irmãos" (Retractationes, II, 6): e devo dizer que também eu sou um destes "irmãos". E graças às Confessiones, podemos seguir passo a passo o caminho interior deste homem extraordinário e apaixonado por Deus. Menos conhecidas mas igualmente originais e muito importantes são, outrossim, as Retractationes, compostas em dois livros por volta do ano 427, nas quais Santo Agostinho já idoso realiza uma obra de "revisão"(retractatio) de toda a sua obra escrita, deixando assim um documento literário singular e extremamente precioso, mas também um ensinamento de sinceridade e de humildade intelectual.

       O De civitate Dei obra imponente e decisiva para o desenvolvimento do pensamento político ocidental e para a teologia cristã da história foi escrito de 413 a 426, em vinte e dois livros. A ocasião era o saque de Roma, levado a cabo pelos Gotos em 410. Numerosos pagãos ainda vivos, mas também muitos cristãos, disseram: Roma caiu e agora o Deus cristão e os apóstolos já não podem proteger a cidade. Durante a presença das divindades pagãs, Roma era caput mundi, a grande capital, e ninguém podia pensar que teria caído nas mãos dos inimigos. Agora, com o Deus cristão, esta grande cidade já não parecia segura. Portanto, o Deus dos cristãos já não protegia, não podia ser o Deus ao qual confiar-se. Nesta objecção, que tocava profundamente também o coração dos cristãos, Santo Agostinho responde com esta obra grandiosa, o De civitate Dei, esclarecendo o que devemos ou não esperar de Deus, qual é a relação entre o campo político e o campo da fé, da Igreja. Também nos dias de hoje, este livro é uma fonte para definir bem a verdadeira laicidade e a competência da Igreja, a grande e verdadeira esperança que a fé nos proporciona.

       Este livro excelso é uma apresentação da história da humanidade governada pela Providência divina, mas actualmente dividida por dois amores. E este é o desígnio fundamental, a sua interpretação da história, que é a luta entre dois amores: o amor a si mesmo, "até à indiferença por Deus", e o amor a Deus", "até à indiferença por si mesmo" (De civitate Dei, XIV, 28), à plena liberdade de si próprio pelos outros, na luz de Deus. Portanto, este é talvez o maior livro de Santo Agostinho, de uma importância permanente. Igualmente importante é o De Trinitate, obra em quinze livros no núcleo principal da fé cristã, a fé no Deus trinitário, escrita em dois tempos: entre 399 e 412, os primeiros doze livros, publicados sem o conhecimento de Agostinho, que por volta de 420 os completou e reviu a obra inteira. Aqui, ele reflecte sobre o rosto de Deus e procura compreender este mistério do Deus que é singular, o único criador do mundo, de todos nós e, todavia, que precisamente este Deus único é trinitário, um círculo de amor. Procura compreender o mistério insondável: exactamente o ser trinitário, em três Pessoas, é a mais real e mais profunda unidade do único Deus. O De doctrina Christiana é, no entanto, uma verdadeira e própria introdução cultural à interpretação da Bíblia e, em última análise, ao próprio cristianismo, que teve uma importância determinante na formação da cultura ocidental.

       Apesar de toda a sua humildade, Agostinho certamente estava consciente da sua estatura intelectual. Mas para ele, mais importante do que realizar grandes obras de elevado significado teológico, era transmitir a mensagem aos simples. Esta sua intenção mais profunda, que orientou toda a sua vida, manifesta-se numa carta escrita ao colega Evódio, na qual comunica a decisão de suspender momentaneamente o ditado dos livros do De Trinitate, "porque são demasiado cansativos e na minha opinião podem ser entendidos por poucos; por isso, são mais urgentes os textos que, esperamos, venham a ser mais úteis para muitos" (Epistulae, 169, 1, 1). Portanto, para ele era mais útil comunicar a fé de modo compreensível para todos, do que escrever grandes obras teológicas. A responsabilidade profundamente sentida em relação à divulgação da mensagem cristã é sentida também na origem de escritos, como De catechizandis rudibus, uma teoria e também uma prática da catequese, ou o Psalmus contra partem Donati. Os donatistas eram o grande problema da África de Santo Agostinho, um cisma intencionalmente africano. Eles afirmavam: a verdadeira cristandade é africana. Opunham-se à unidade da Igreja. Contra este cisma, o grande Bispo lutou durante toda a sua vida, procurando convencer os donatistas que somente na unidade também a africanidade pode ser verdadeira. E para se fazer compreender pelos mais simples, que não conseguiam entender o latim erudito do reitor, disse: devo escrever também com erros gramaticais, num latim muito simplificado. E fê-lo sobretudo neste Psalmus, uma espécie de poesia simples contra os donatistas, para ajudar todas as pessoas a compreenderem que unicamente na unidade da Igreja se realiza para todos realmente a nossa relação com Deus e aumenta a paz no mundo.

    Nesta produção destinada a um público mais vasto reveste uma importância particular o número de homilias, muitas vezes pronunciadas "de modo improvisado", transcritas pelos taquígrafos durante a pregação e imediatamente postas em circulação. Entre elas, sobressaem as lindas Enarrationes in Psalmos, muito lidas na Idade Média. Precisamente a prática de publicação dos milhares de homilias de Agostinho muitas vezes sem o controle do autor explica a sua difusão e sucessiva dispersão, mas também a sua vitalidade. Com efeito, imediatamente as pregações do Bispo de Hipona tornavam-se, pela fama do seu autor, textos muito procurados e serviam também para outros Bispos e sacerdotes como modelos, adequados a contextos sempre novos.

       A tradição iconográfica, já num afresco lateranense que remonta ao século VI, representa Santo Agostinho com um livro na mão, sem dúvida para expressar a sua produção literária que influenciou em grande medida a mentalidade e o pensamento cristãos, mas para exprimir também o seu amor pelos livros, pela leitura e pelo conhecimento da grande cultura precedente. Quando faleceu nada deixou, narra Possídio, mas "recomendava sempre que se conservasse diligentemente para a posteridade a biblioteca da igreja com todos os códices", sobretudo os das suas obras. Nelas, sublinha Possídio, Agostinho está "sempre vivo" e beneficia quem lê os seus escritos não obstante, conclui ele, "na minha opinião puderam tirar mais proveito do seu contacto aqueles que o conseguiram ver e ouvir, quando falava pessoalmente nas igrejas, e sobretudo aqueles que tiveram a experiência da sua vida quotidiana no meio do povo" (Vita Augustini, 31). Sim, também para nós teria sido muito bom poder ouvi-lo pessoalmente. Todavia, ele está deveras vivo nos seus escritos, está presente em nós e assim sentimos também a vitalidade permanente da fé, à qual ele entregou toda a sua vida.

BENTO XVI - Santo Agostinho de Hipona (5)

Queridos irmãos e irmãs!
        Com o encontro de hoje gostaria de concluir a apresentação da figura de Santo Agostinho. Depois de termos analisado a sua vida, as suas obras e alguns aspectos do seu pensamento, hoje gostaria de falar de novo sobre a sua vicissitude interior, que fez dele um dos maiores convertidos da história cristã. Dediquei a esta sua experiência em particular a minha reflexão durante a peregrinação que realizei a Pavia, no ano passado, para venerar os despojos mortais deste Padre da Igreja. Deste modo quis expressar-lhe a homenagem de toda a Igreja católica, mas também tornar visível a minha pessoal devoção e reconhecimento em relação a uma figura à qual me sinto muito ligado pela parte que teve na minha vida de teólogo, de sacerdote e de pastor.
       Ainda hoje é possível repercorrer a vicissitude de Santo Agostinho graças sobretudo às Confissões, escritas para louvor de Deus e que estão na origem de uma das formas literárias mais específicas do Ocidente, a autobiografia, isto é, a expressão pessoal da consciência de si. Pois bem, quem quer que tome conhecimento deste livro extraordinário e fascinante, ainda hoje muito lido, apercebe-se facilmente do modo como a conversão de Agostinho não tinha sido improvisada nem plenamente realizada desde o início, mas possa antes ser definida um verdadeiro caminho, que permanece um modelo para cada um de nós. Este itinerário teve certamente o seu ápice com a conversão e depois com o baptismo, mas não se concluiu naquela Vigília pascal do ano 387, quando em Milão o retórico africano foi baptizado pelo Bispo Ambrósio. De facto, o caminho de conversão de Agostinho prosseguiu humildemente até ao fim da sua vida, a ponto que se pode verdadeiramente dizer que as suas diversas etapas podem-se distinguir facilmente três são uma única grande conversão.
        Santo Agostinho foi um pesquisador apaixonado da verdade: foi-o desde o início e depois em toda a sua vida. A primeira etapa do seu caminho de conversão realizou-se precisamente na progressiva aproximação ao cristianismo. Na realidade, ele tinha recebido da mãe Mónica, à qual permaneceu sempre muito ligado, uma educação cristã e, apesar de ter vivido durante os anos juvenis uma vida desregrada, sentiu sempre uma atracção profunda por Cristo, tendo bebido o amor pelo nome do Senhor com o leite materno, como ele mesmo ressalta (cf. Confessiones, III, 4, 8). Mas também a filosofia, sobretudo de índole platónica, tinha contribuído para o aproximar ulteriormente a Cristo manifestando-lhe a existência do Logos, a razão criadora. Os livros dos filósofos indicavam-lhe que há a razão, da qual vem depois todo o mundo, mas não lhe diziam como alcançar este Logos, que parecia tão distante. Só a leitura do epistolário de São Paulo, na fé da Igreja católica, lhe revelou plenamente a verdade. Esta experiência foi sintetizada por Agostinho numa das páginas mais famosas das Confessiones: ele narra que, no tormento das suas reflexões, tendo-se retirado num jardim, ouviu improvisamente uma voz infantil que repetia uma cantilena que nunca tinha ouvido: tolle, lege, tolle, lege, "toma, lê, toma, lê" (VIII, 12, 29). Recordou-se então da conversão de António, pai do monaquismo, e com solicitude voltou ao código paulino que até há pouco tinha nas mãos, abriu-o e o seu olhar caiu na passagem da epístola aos Romanos onde o Apóstolo exorta a abandonar as obras da carne e a revestir-se de Cristo (13, 13-14). Tinha compreendido que aquela palavra naquele momento se dirigia pessoalmente a ele, vinha de Deus através do Apóstolo e indicava-lhe o que fazer naquele momento. Sentiu assim dissipar-se as trevas da dúvida e encontrou-se enfim livre de se doar totalmente a Cristo: "Tinhas convertido a ti o meu ser", comenta ele (Confessiones, VIII, 12, 30). Foi esta a primeira e decisiva conversão.
        O retórico africano chegou a esta etapa fundamental do seu longo caminho graças à sua paixão pelo homem e pela verdade, paixão que o levou a procurar Deus, grande e inacessível. A fé em Cristo fez-lhe compreender que Deus, aparentemente tão distante, na realidade não o era. Ele, de facto, tinha-se feito próximo de nós, tornando-se um de nós. Neste sentido a fé em Cristo levou a cumprimento a longa pesquisa de Agostinho sobre o caminho da verdade. Só um Deus que se fez "próximo", um de nós, era finalmente um Deus ao qual se podia rezar, pelo qual e com o qual se podia viver. Este é um caminho a percorrer com coragem e ao mesmo tempo com humildade, na abertura a uma purificação permanente da qual cada um de nós tem sempre necessidade. Mas com aquela Vigília pascal de 387, como dissemos, o caminho de Agostinho não estava concluído. Tendo regressado à África e fundado um pequeno mosteiro retirou-se aí com poucos amigos para se dedicar à vida contemplativa e de estudo. Este era o sonho da sua vida. Agora era chamado a viver totalmente pela verdade, com a verdade, na amizade de Cristo que é a verdade. Um sonho agradável que durou três anos, até quando foi consagrado sacerdote, a seu mau grado, em Hipona e destinado a servir os fiéis, continuando a viver com Cristo e por Cristo, mas ao serviço de todos. Isto era para ele muito difícil, mas compreendeu desde o início que só vivendo para os outros, e não simplesmente para a sua contemplação particular, podia realmente viver com Cristo e por Cristo. Assim, renunciando a uma vida apenas de meditação, Agostinho aprendeu, muitas vezes com dificuldade, a pôr à disposição o fruto da sua inteligência em benefício do próximo. Aprendeu a comunicar a sua fé ao povo simples e a viver assim para ela naquela que se tornou a sua cidade, desempenhando incansavelmente uma actividade generosa e difícil que descreve do seguinte modo num dos seus belos sermões: "Continuamente pregar, discutir, repreender, edificar, estar à disposição de todos é uma grande tarefa, um grande peso, uma enorme fadiga" (Serm. 339, 4). Mas ele assumiu sobre si este peso, compreendendo que precisamente assim podia estar mais próximo de Cristo. Compreender que se chega aos outros com simplicidade e humildade, foi esta a sua verdadeira e segunda conversão.

       Mas há uma última etapa do caminho agostiniano, uma terceira conversão: a que o levou todos os dias da sua vida a pedir perdão a Deus. Inicialmente tinha pensado que quando fosse baptizado, na vida de comunhão com Cristo, nos Sacramentos, na celebração da Eucaristia, teria alcançado a vida proposta pelo Sermão da montanha: a perfeição doada no baptismo e reconfirmada na Eucaristia. Na última parte da sua vida compreendeu que o que tinha dito nas suas primeiras pregações sobre o Sermão da montanha isto é, que agora nós como cristãos vivemos este ideal permanentemente era errado. Só Cristo realiza verdadeira e completamente o Sermão da montanha. Nós temos sempre necessidade de ser lavados por Cristo, que nos lava os pés, e por Ele renovados. Temos necessidade de uma conversão permanente. Até ao fim temos necessidade desta humildade que reconhece que somos pecadores a caminho, enquanto o Senhor nos dá a mão definitivamente e nos introduz na vida eterna. Agostinho faleceu com esta última atitude de humildade, vivida dia após dia.

       Esta atitude de humildade profunda diante do único Senhor Jesus introduziu-o na experiência de humildade também intelectual. De facto, Agostinho, que é uma das maiores figuras na história do pensamento, quis nos últimos anos da sua vida submeter a um lúcido exame crítico as suas numerosas obras. Tiveram assim origem as Retractationes ("revisões"), que deste modo inserem o seu pensamento teológico, verdadeiramente grande, na fé humilde e santa daquela a que chama simplesmente com o nome de Catholica, isto é, da Igreja. "Compreendi escreve precisamente neste livro muito original (I, 19, 1-3) que um só é verdadeiramente perfeito e que as palavras do Sermão da montanha estão totalmente realizadas num só: no próprio Jesus Cristo. Toda a Igreja, ao contrário todos nós, inclusive os apóstolos devemos rezar todos os dias: perdoai-nos os nossos pecados assim como nós os perdoamos a quem nos tem ofendido".

      Convertido a Cristo, que é verdade e amor, Agostinho seguiu-o toda a vida e tornou-se um modelo para cada ser humano, para nós todos em busca de Deus. Por isto quis concluir a minha peregrinação a Pavia recomendando idealmente à Igreja e ao mundo, diante do túmulo deste grande apaixonado de Deus, a minha primeira Encíclica, intitulada Deus caritas est. De facto, ela deve muito, sobretudo na sua primeira parte, ao pensamento de Santo Agostinho. Também hoje, como no seu tempo, a humanidade precisa de conhecer e sobretudo viver esta realidade fundamental: Deus é amor e o encontro com ele é a única resposta às inquietações do coração humano. Um coração habitado pela esperança, talvez ainda obscura e inconsciente em muitos dos nossos contemporâneos, mas que para nós cristãos abre já hoje ao futuro, a ponto que São Paulo escreveu que "na esperança somos salvos" (Rm 8, 24). Quis dedicar à esperança a minha segunda Encíclica, Spe salvi, e também ela é amplamente devedora a Agostinho e ao seu encontro com Deus.
       Num bonito texto Santo Agostinho define a oração como expressão do desejo e afirma que Deus responde alargando a Ele o nosso coração. Por nosso lado, devemos purificar os nossos desejos e as nossas esperanças para acolher a doçura de Deus (cf. In I Ioannis, 4, 6). De facto, só ela, abrindo-nos também aos outros, nos salva. Rezemos portanto para que na nossa vida nos seja concedido todos os dias seguir o exemplo deste grande convertido, encontrando como ele em cada momento da nossa vida o Senhor Jesus, o único que nos salva, purifica e concede a verdadeira alegria, a verdadeira vida.

sábado, 22 de agosto de 2015

XXI Domingo do Tempo Comum - ano B - 23 de agosto

       1 – «Para quem iremos, Senhor? Tu tens palavras de vida eterna. Nós acreditamos e sabemos que Tu és o Santo de Deus».
       Pedro faz a sua profissão de fé em Jesus. Espontâneo como sempre, ainda que os motivos não estejam amadurecidos. O discurso de Jesus – Pão da Vida, Pão descido do Céu, que é a Sua carne entregue a favor de todos – gera, como expectável, enorme contestação: «Como pode Ele dar-nos a Sua carne a comer?»
       Jesus insiste: «Quem come deste Pão viverá eternamente». E a discussão acentua-se.
       Os discípulos também fazem parte com a multidão. Têm dúvidas e perguntas a fazer. Não compreendem como têm de comer a carne, o corpo de Jesus: «Estas palavras são duras (ou são insuportáveis, na tradução dos Capuchinhos). Quem pode escutá-las?».
       A murmuração, já antes presente, torna-se mais audível. Jesus devolve-lhes as perguntas: «Isto escandaliza-vos? E se virdes o Filho do homem subir para onde estava anteriormente? O espírito é que dá vida, a carne não serve de nada. As palavras que Eu vos disse são espírito e vida. Mas, entre vós, há alguns que não acreditam... Por isso é que vos disse: Ninguém pode vir a Mim, se não lhe for concedido por meu Pai».
       O evangelista dá nota que a partir de então muitos discípulos se afastaram e já não andavam com Ele. Então Jesus testa a firmeza dos Doze: «Também vós quereis ir embora?».
       Podemos encontrar um paralelismo noutro diálogo: «Quem dizem os homens que é o Filho do Homem?» Dada a resposta – João Batista, Elias, ou um dos profetas –, logo Jesus os encosta à parede: "E vós quem dizeis que Eu sou?", exigindo-lhes uma clarificação para prosseguirem caminho. Também aí Pedro garante a fé em Jesus, como o Messias de Deus (cf. Lc 9, 18-20).
        2 – A liturgia da Palavra coloca-nos diante de um exercício de liberdade. Jesus testa o seu núcleo duro: E vós? Quereis seguir outro caminho? Ou arriscais seguir-Me, com tudo o que isso implica? Estais dispostos a dar a vida por Mim? E pelos outros? E pelos vossos inimigos?
       Não há ameaças. Por vezes seria mais fácil: fazes assim ou Deus castiga-te! Ou entras na linha ou vais ver o que que é bom para a tosse! Reprimendas às nossas crianças: se não te portares bem, Jesus não gosta de ti!
       Seguir Jesus tem exigências. Não é para pessoas mornas, mas para pessoas decididas, ainda que haja dúvidas, cansaços, hesitações, pecados. Seguir Jesus implica renunciar a muitas coisas, renunciar a si mesmo, a todo o egoísmo, libertando-se para que Cristo nos preencha com o Seu amor. E tomar a sua cruz dia após dia.
       Em Cristo não há ameaças, condenações, diabolizações. Bem se pode dizer que Jesus está envolvido trinitariamente (com o Pai e com o Espírito Santo). Nos dias que transcorrem é fácil visualizar a diabolização: ou nós ou o caos. É tão duro reconhecer que os outros têm qualidades! E pior, são bons em muitas coisas em que não passamos de aselhas! E se não alinham pelas nossas ideias?! Não seria melhor eliminá-los. É, aliás, uma tentação já presente no Evangelho quando os discípulos encontram um homem a expulsar demónios em nome de Jesus Cristo e proíbem-no porque não faz parte do grupo (cf. Mc 9, 38-41). Jesus dá aos discípulos a possibilidade de seguirem um caminho que os conduza até à eternidade. Mas sem chantagem ou jogos ardilosos.
       Na primeira leitura, Josué, o sucessor de Moisés, coloca ao povo uma escolha: «Se não vos agrada servir o Senhor, escolhei hoje a quem quereis servir: se os deuses que os vossos pais serviram no outro lado do rio, se os deuses dos amorreus em cuja terra habitais. Eu e a minha família serviremos o Senhor». 
        Como se pode ver, Josué faz uma proposta. Dá o exemplo. Ele seguirá o Senhor, Deus de Abraão, de Isaac e de Jacob, o Deus. E assim a sua família. Mas sem pressões. O povo fica livre para decidir: «Longe de nós abandonar o Senhor para servir outros deuses; porque o Senhor é o nosso Deus, que nos fez sair, a nós e a nossos pais, da terra do Egipto, da casa da escravidão. Também nós queremos servir o Senhor, porque Ele é o nosso Deus».
       3 – Só se pode decidir na liberdade. Se nos obrigam, então escolhem por nós. Deus cria-nos por amor mas não nos salva sem nós, por maior que seja o Seu amor para connosco. Um pouco como os pais, não podem decidir a vida inteira pelos filhos, estes ficariam crianças para sempre. É preciso educá-los, dar-lhes as ferramentas, ensinar-lhes o melhor da vida, a compaixão, a justiça, a solidariedade, a capacidade de discernir e escolher o bem. Educá-los pressupõe que se lhes proporciona cada vez mais autonomia para fazerem as próprias escolhas.
        Deus não nos trata como crianças, mas como filhos.
        Se somos obrigados a fazer alguma coisa, fazemo-la contrariados, tudo faremos para fazer mal ou simplesmente não faremos. Se nos sentirmos livres e se temos escolha, então tudo se torna mais simples. Faremos das fraquezas forças para corresponder ao melhor de nós. Certamente todos já presenciamos a birra de alguma criança que só não faz porque lhe mandam. Daí um conselho tradicional: queres que o teu filho coma sopa, come tu também. É esse o exemplo de Josué.
        Então só fazemos o que nos apetece? O que nos dá na real gana? Claro que não.
       Diz-nos São Paulo: Tudo me é permitido, mas nem tudo é conveniente (cf. 1Cor 6, 12).
        Escolhemos um caminho, um estilo de vida e depois agimos em conformidade. Queremos entrar na universidade? Então esforçarmo-nos de tal que possamos ter médias para conseguir entrar no curso pretendido. Queremos ser atores ou atrizes? Então teremos que fazer por isso, entrar numa peça, em anúncios, em audições (castings), frequentar um curso, fazer wokshop's...
       Ninguém nos pode obrigar a gostar desta ou daquela pessoa. Os outros não nos podem obrigar, mas cada um de nós pode tentar compreender o outro, aceitar as suas limitações, não valorizar muito as suas falhas... Mas tem que partir de nós!

        4 – O Apóstolo Paulo, na carta aos Efésios, que temos vindo a ler, aponta Cristo como fundamento da nossa fé e da nossa vivência quotidiana. A proposta de Jesus interpela-nos a viver intensamente, procurando dar o melhor de nós mesmos e a descobrir o melhor dos outros. Há dias menos fáceis, mas o desafio é constante: amar sem cálculos nem medidas. Como diria a Madre Teresa, é fácil amar os que estão distantes e cuidar dos estranhos, difícil mesmo é amar e cuidar dos que estão perto, dos de nossa casa, e sobretudo ao longo do tempo, e em todos os momentos. Chegar a casa, cansado ou aborrecido e ser capaz de sorrir, de ter uma palavra de atenção e de carinho, não é fácil. Porém, é em casa que começo a ser cristão.
        O apóstolo aponta situações e pessoas concretas. Desta feita dirige-se aos casais cristãos: «Sede submissos uns aos outros no temor de Cristo… As mulheres submetam-se aos maridos como ao Senhor... Maridos, amai as vossas mulheres, como Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela. Quem ama a sua mulher ama-se a si mesmo… Somos membros do seu Corpo… É grande este mistério, digo-o em relação a Cristo e à Igreja».
       Num sentido mais lado, a mensagem é para todos, é para as comunidades crentes. A linguagem da "submissão" pode ser dúbia e discriminatória, porém o conteúdo é o mesmo para maridos e mulheres, para cada um de nós: amar, amar, amar. Amar ao jeito de Jesus que dá a vida pela Igreja e fazer com que o outro seja único para mim, como Cristo em relação à Igreja.
        Sublime, a propósito, a oração de coleta deste domingo: «Senhor Deus, que unis os corações dos fiéis num único desejo, fazei que o vosso povo ame o que mandais e espere o que prometeis, para que, no meio da instabilidade deste mundo, fixemos os nossos corações onde se encontram as verdadeiras alegrias».

Pe. Manuel Gonçalves


Textos para a Eucaristia (B): Jos 24,1-2a.15-17.18b; Sl 33 (34); Ef 5, 21-32; Jo 6, 60-69.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

O teu Deus será o meu Deus, o teu povo será o meu...

       No tempo em que os juízes governavam, houve uma fome no país. Certo homem deixou Belém de Judá e emigrou para os campos de Moab, com a mulher e dois filhos. Ele chamava-se Elimelec e a mulher Noémi. Elimelec, marido de Noémi, faleceu e ela ficou só com os seus dois filhos.
       Ambos casaram com esposas moabitas, uma chamada Orpa e a outra Rute. Permaneceram lá cerca de dez anos. Entretanto os filhos também morreram e Noémi ficou só, sem os dois filhos e sem o marido. Resolveu então voltar dos campos de Moab, juntamente com as noras, por ter sabido, nos campos de Moab, que o Senhor tinha abençoado o seu povo, dando-lhe pão. Orpa despediu-se da sogra e voltou para o seu povo; mas Rute ficou com Noémi. Disse-lhe Noémi: «Olha que a tua cunhada voltou para o seu povo e para o seu deus. Vai também com ela». Rute respondeu-lhe: «Não insistas comigo, para que te deixe e me afaste de ti, pois irei para onde fores e viverei onde viveres. O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus». Foi assim que Noémi regressou dos campos de Moab, trazendo consigo sua nora Rute, a moabita. Chegaram a Belém no início da ceifa da cevada (Rute 1, 1-2a.3-6.14b-16.22 ).
       Este é um extraordinário texto sobre a conversão de Rute, moabita, e sobre o compromisso que assume com o povo hebreu, o povo da primeira Aliança. Os filhos de Noémi casaram com duas mulheres de Moab. Viúva, Noémi ficou junto dos dois filhos, que viriam a falecer, pelo que voltou para a sua terra, para o seu povo. Como os filhos não deixaram descendências, as noras poderiam voltar para casa dos seus pais a fim de procurarem novos maridos e assim assegurar descendência.
       Noémi, sem marido, sem filhos e sem netos, regressa ao seu povo, sabendo que Deus abençoou o seu povo e que entre os seus poderá encontrar alguma proteção e ajuda. Uma das noras regressa a sua casa. Rute, porém, e em definitivo, segue Noémi, fazendo luminosa profissão de fé: «Irei para onde fores e viverei onde viveres. O teu povo será o meu povo e o teu Deus será o meu Deus».
       Por um lado, pode sublinhar-se a importância de Noemi, certamente que a sua bondade, a sua vivência e a sua fé conduzem Rute pela mão. Por outro, a na continuação do texto se verá que o acolhimento que Noemi teve em terra estrangeira, também a estrangeira Rute será bem acolhida na terra da sua sogra. Nestes dias que se fala de bem acolher estrangeiros e refugiados, aqui está um belíssimo testemunho. Veja-se, no breve livro de Rute, a tradição que perdurou no tempo, de respigar os campos de trigo a fim de matar a fome...
       Chamada de atenção também para o facto de Rute ser incluída na genealogia de David e posteriormente na genealogia de Jesus. A salvação que Deus nos dá inclui-nos a todos, também aos estrangeiros.

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

São João Eudes, presbítero

Nota biográfica:
       Nasceu na diocese de Séez (França) no ano 1601; recebeu a ordenação sacerdotal e dedicou se durante vários anos à pregação nas paróquias. Fundou duas Congregações: uma destinada à formação sacerdotal dos seminaristas e outra para a educação das mulheres cuja vida cristã corria perigo. Fomentou com particular zelo a devoção aos Corações de Jesus e de Maria. Morreu em 1680.
Oração (de coleta):
       Senhor nosso Deus, que Vos dignastes escolher o presbítero São João Eudes para anunciar as insondáveis riquezas do mistério de Cristo, concedei-nos que, seguindo o seu exemplo e os seus ensinamentos, conheçamos cada vez melhor a vossa verdade e vivamos fielmente à luz do Evangelho. Por Nosso Senhor Jesus Cristo, vosso Filho, que é Deus convosco na unidade do Espírito Santo.
São João Eudes, sobre o admirável Coração de Jesus

Fonte de salvação e de vida verdadeira

Rogo-te que penses em Nosso Senhor Jesus Cristo como tua verdadeira Cabeça e em ti como um dos seus membros. Ele é para ti como a cabeça para os membros.
Tudo o que é d’Ele é teu: o seu espírito, o seu coração, o seu corpo, a sua alma e todas as suas faculdades. Deves usar de todas elas como se fossem realmente tuas, para servir, louvar, amar e glorificar a Deus. Tu és para Ele como um membro em relação à cabeça; e por isso também Ele deseja ardentemente servir-Se de todas as tuas faculdades como se fossem suas, para servir e glorificar o Pai.
Cristo não somente é para ti, mas quer também estar em ti, viver e dominar em ti, como a cabeça vive e reina nos seus membros. Quer que tudo quanto n’Ele existe viva e domine em ti: o seu espírito no teu espírito, o seu coração no teu coração, todas as faculdades da sua alma nas faculdades da tua alma, de modo que se realizem em ti aquelas palavras: Glorificai e trazei a Deus no vosso corpo, e a vida de Jesus se manifeste em vós.
E tu não somente és para o Filho de Deus, mas deves estar n’Ele tal como os membros estão na cabeça. Tudo quanto há em ti deve ser inserido n’Ele e d’Ele deves receber a vida e por Ele ser governado. Fora d’Ele não encontrarás a vida verdadeira, porque Ele é a única fonte de vida verdadeira; fora d’Ele não encontrarás senão morte e perdição.
Seja Ele o único princípio dos teus movimentos, acções e energias da tua vida; deves viver d’Ele e por amor d’Ele, para que em ti se cumpram estas palavras: Nenhum de nós vive para si mesmo e nenhum de nós morre para si mesmo; se vivemos, vivemos para o Senhor, e se morremos, morremos para o Senhor. Portanto, quer vivamos quer morramos, pertencemos ao Senhor. De facto, Cristo morreu e ressuscitou para ser o Senhor dos mortos e dos vivos. Tu és, por conseguinte, uma só coisa com Jesus, como os membros são uma só coisa com a cabeça; e por isso deves ter com Ele um só espírito, uma só alma, uma só vida, uma só vontade, um só pensamento, um só coração. E Ele deve ser o teu espírito, o teu coração, o teu amor, a tua vida, enfim, deve ser tudo para ti. Todas estas grandezas do cristão têm a sua origem no Batismo, crescem e robustecem se pela Confirmação e pelo bom exercício das outras graças que Deus lhe comunica e que têm o seu mais perfeito complemento na sagrada Eucaristia.

segunda-feira, 17 de agosto de 2015

Que hei-de fazer para ter a vida eterna?

       Aproximou-se de Jesus um jovem, que Lhe perguntou: «Mestre, que hei-de fazer de bom para ter a vida eterna?». Jesus respondeu-lhe: «Porque Me interrogas sobre o que é bom? Bom é um só. Mas se queres entrar na vida, guarda os mandamentos». Ele perguntou: «Que mandamentos?». Jesus respondeu-lhe: «Não matarás, não cometerás adultério; não furtarás; não levantarás falso testemunho; honra pai e mãe; ama o teu próximo como a ti mesmo». Disse-lhe o jovem: «Tudo isso tenho eu guardado. Que me falta ainda?». Jesus respondeu-lhe: «Se queres ser perfeito, vende o que tens e dá-o aos pobres e terás um tesouro nos Céus. Depois vem e segue-Me». Ao ouvir estas palavras, o jovem retirou-se entristecido, porque tinha muitos bens (Mt 19, 16-22).
       Olhando para os meios de comunicação social facilmente verificamos como os bens materiais são a ruína de muitas pessoas. A crise económica-financeira é também (e sobretudo) crise de valores. Quantas empresas, à procura de lucro fácil, se esqueceram de apostar na qualidade e nas pessoas?! Quantas empresas foram à falência, com centenas de milhares de empregos a serem perdidos todos os dias?! Veja-se, por outro lado, o que resulta das heranças (multimilionárias), como do português em que filha e secretária, com um advogado conhecido pelo meio, discutiam a fortuna deixada, bem como a morte da secretária?!
       Os bens materiais são importantes, ao conforto, ao bem-estar pessoal e familiar, mas não um fim em si mesmo. O essencial são as pessoas e a sua felicidade, que se constrói com outros valores, com valores espirituais, a amizade, a partilha solidária, a justiça, o bem, o amor, a ternura, a convivência sadia com os outros.
       Para este jovem, os bens materiais foram um empecilho para se realizar como pessoa, para ser feliz...